terça-feira, 31 de agosto de 2010

Último round - tomo II

Capa da edição atual, da Civilização Brasileira


            Dando continuidade à resenha de “Último round”, comento agora o segundo volume (a divisão da resenha em duas partes é explicada na primeira delas). Neste, temos quase o mesmo número de páginas, porém a quantidade de textos é bem maior: são cinqüenta e sete textos agrupados no mesmo estilo do primeiro tomo, diversos em forma e conteúdo.


             Este segundo tomo tem textos muito interessantes, o que tornou difícil fazer uma seleção daqueles que comentarei. Mas como sempre se tem de começar por algum lugar e seria enfadonho e penoso comentar todos os textos, vai abaixo a seleção dos que considerei mais relevantes e gostosos de ler.


            Já o primeiro texto é um deles: “A entrada em religião de Teodoro W. Adorno” conta a história da relação de Cortázar com um gato sem dono que aparecia em sua casa de campo, em Saignon, França. Cortázar e sua companheira davam ao gato os cuidados que ele precisava e também comida, mas sempre o deixavam livre, não levavam o animal consigo quando voltavam a Paris. É uma história triste, eu acredito, sendo a única feição um pouco cômica o nome do gato, que de certo foi homenagem ao filósofo alemão Theodor Adorno.


            “Ciclismo em Grignan” é sobre um dos assuntos mais recorrentes em Cortázar: o tempo e a sua seqüenciação. Mas, além disso, há teor erótico nesse texto, um teor encontrado em outros textos que aparecem mais adiante no livro. Claro, esse erotismo aparece expresso com muita sensibilidade, como é habitual do autor, mas aqui parece que esse erotismo se mostra mais, não ficando tão velado.


            “Desjejum” é um conto simples em seu enredo, nada de especial acontecendo. O que ele tem de diferenciado é a maneira como os personagens chamam-se, um jeito bastante heterodoxo e que, digo pro experiência própria, bagunça a cabeça e provoca o riso.


            Os poemas também estão presentes nesse segundo volume, embora, na minha opinião, a obra “não-poêmica” (permitam-me o neologismo) de Julio ainda seja seu melhor. Mas há gratas surpresas, como “Cenotáfio”, e a série de poemas “Naufrágios na ilha”, onde Cortázar novamente tem por tema o sensual (e o expressa bem à sua maneira, ou seja, sem ser muito figurativo). Por falar nisso, em “/vamos todos cirandar” (assim mesmo, com uma / antes do “vamos”), é discutida a aparente incapacidade dos escritores em prosa representarem de maneira satisfatória a sensualidade, o erotismo. Cortázar advoga que não tínhamos na América Latina tradição em narrar essas belezas humanas de maneira sensível, ao contrário dos franceses e ingleses, por exemplo; e que não adianta nada ler Miller ou Bataille se não aprendermos com eles a tratar de maneira diferente essa temática.


            “A imiscussão terrupta” lida com palavras forjadas por Cortázar e provoca um estranhamento mais ou menos como “Desjejum”, mas em outro nível. Para quem já conhece o glíglico de Oliveira e Maga em “O jogo da amarelinha”, não será motivo de muito estranhamento.


            “Diálogo das formas” é um texto sobre as obras do escultor Reinhoud. Após o breve texto, há fotos das obras com textos que seriam como as falas delas – um exercício criativo muito criativo de Cortázar.


            “Cristal com uma rosa dentro” é um dos textos citados pelo autor em seu livro de conversas com Ernesto G. Bermejo como uma das referências que podem ajudar a compreender seu livro “62: Modelo para armar” e relata as sensações de Cortázar durante as experiências pelas quais passa, nas quais fatores independentes juntam-se de maneira pouco compreensível e formam uma outra coisa, nova e independente.


            “Marcelo do Campo” e “Una voce poco fa” também são, como “Diálogo das formas”, homenagens a artistas. Marcelo do Campo é uma emocionante homenagem a Marcel Duchamp, que Cortázar liga, de certa forma ao já citado Oliveira de “Amarelinha”, enquanto “Una voce poco fa” é uma reflexão sobre a banalização das tecnologias que nos permitem ouvir músicas cada vez mais comumente, sem nos darmos conta do milagre que é reproduzir o instante de expressão vocal de um artista, como os vários citados ao longo do texto. Um texto que aparece mais adiante também é semelhante a esses: “Salvador Dalí, sem valor adalide” é uma homenagem e, não exatamente uma defesa, mas um depoimento a favor de Salvador Dalí e de sua maneira de fazer arte.


            Mas antes do texto de Dalí, “A noite em Saint-Tropez” é um texto tenso e intenso sobre a gente rica e fútil que circula no balneário francês. Cortázar consegue dar bem a impressão de futilidade dos seres e de endeusamento dos objetos. Só não compreendo se Joyce Mansour é criticada ou homenageada com o texto.


            Por falar em textos tensos... “Sesta” é o mais tenso deles nesses dois volumes, acredito. É também um dos contos onde a presença do sensual se faz mais presente e, vejam só, foi o texto que mais me lembrou do Cortázar do fantástico. Certamente um dos melhores textos de todo “Último round”: confunde, desorienta, e deixa o leitor tenso até a sua conclusão. Sem nenhum pudor de ser informal, é um baita texto.


            “Sobre a situação do intelectual latino-americano” é um texto político, no qual Julio deixa clara sua posição política e sua admiração pelo socialismo. Um texto muito interessante para compreender como se deu o processo de “desalienação” social e literária. Só imagino o que ele pensaria se estivesse vivo hoje e visse o que resta dos regimes socialistas...


            E, enfim, “Aos maus entendedores” estabelece relação com um texto do primeiro tomo, “Descrição de um combate, ou para o bom entendedor”, e trata das repercussões da derrota de um boxeador argentino. Uma maneira de reforçar a unidade entre os dois tomos de um grande livro, de um Cortázar em ótima forma literária.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Último round - tomo I

Capa da edição atual, da Civilização Brasileira


            Antes de tudo, cabe um esclarecimento: esta resenha será escrita em duas partes, apesar de o livro ter sido originalmente publicado em uma parte, pelo que me consta. Acontece que em sua muito recente edição nacional, “Último round” foi publicado em dois tomos e li em algum lugar que todo o processo de composição da edição nacional foi muito esmerado (em especial em recuperar fotos e ilustrações), com a intenção de fazer o livro do jeito que Cortázar queria que fosse. Pode ser que isso soe aparentado à idéia de “o que o autor quis dizer”, tão discutida nos estudos da tradução (e que geralmente se aceita como algo inatingível, pois às vezes nem o autor lembra o que quis dizer) e que, portanto, não faça sentido respeitar essa divisão. Mas como se trata de um livro de muitos textos, em geral curtos, se eu fizesse uma resenha geral talvez deixasse algo para trás, algo interessante esquecido por tê-lo lido há mais tempo. Bem, vamos a ver:

            Nesse primeiro tomo, são trinta e cinco textos: poemas, relatos, notícias de jornal, contos, artigos de opinião, resenhas etc. E, claro, nem todos os textos são amplamente encaixáveis em só uma dessas categorias. Mas é admirável que Cortázar tenha concebido um livro que é capaz de conter todos esses tipos de texto (e, possivelmente, outros que escapam à minha percepção), sempre fazendo referências copiosas culturais.

            Não poderia falar de todos os texto sem estender essa resenha à exaustão, mas alguns textos merecem ser citados, por motivos diversos. Por exemplo, entre as poesias (tipo textual em que Cortázar não me agrada tanto, exceto nos poemas mais eróticos) destaca-se “Sílaba viva”, que tem tradução esmerada (Paulina Wacht e Ari Roitman), buscando ao mesmo tempo manter o sentido e a sonoridade do poema em espanhol.

            “Um de tantos dias de Saignon” é um relato do cotidiano de Cortázar em sua casa no sul da França. É incrível como consegue reproduzir seus próprios pensamentos e divagações como faz com seus personagens e também é surpreendente a diversidade de pensamentos que lhe ocorrem.

            “Do conto breve e seus arredores”, um pouco mais adiante, é um dos textos teóricos de Cortázar mais lidos por quem quer mais do que o prazer da leitura. Trata-se de um texto em que Julio avalia o a escritura do conto, fazendo algumas observações sobre esse processo. A meu ver, que não me interesso nada por teorias literárias (e tradutórias – para mim, não são questões teóricas, mas práticas: se aprende fazendo, e fazendo muito), é um texto interessante pelo que pode contribuir para a melhora do estilo e técnica, mas é mais interessante ainda por que se trata do próprio autor comentando como a coisa funciona para ele mesmo, a sua visão de contista sobre o conto.

            “Notícias do mês de maio” é um apanhado de frases e pequenos textos, em sua maioria de origem universitária, que comentam, satirizam, comemoram o contexto do movimento estudantil de maio de 1968. Um texto muito heterogêneo e bem espirituoso. Na contramão desse sentimento de revolução e evolução, “Turismo aconselhável” mostra uma Índia economicamente miserável, mas rica em um povo resistente.

            Em “Silvia” uma moça enigmática com um ar de Alice deixa inquieto o narrador desse conto que talvez seja o mais parecido, de todo esse tomo, com os contos fantásticos de Cortázar.

            ‘Tua pele mais profunda” é quase poesia em forma de prosa. Num teor erótico suave mas não tão sutil é contada essa história de envolvimento e prazer e ”pena”.

            Já bem no fim, “Considerando o sucesso obtido” parece uma resenha de um livro ficcional (algo como “Aproximação a Almotásim”, de Borges), mas, no fim das contas, parece que o livro do relato de Cortázar existiu de verdade, o que torna o relato mais impressionante.

            O último texto que comento é “A boneca quebrada”, relacionado aos eventos do livro “62: Modelo para armar”, ampliando e explicando conceitos que, segundo o próprio Cortázar ele sacou do texto de “62” para deixá-lo mais sintético.

            Tudo isso é muito bem ilustrado por fotografias e desenhos que se inserem entre um texto e outro e, não raro, no meio de cada texto, fazendo lembrar “Prosa do observatório”, só que com gravuras, pinturas e muito mais além de fotos do próprio autor.

            Comentaria muitos outros textos interessantes, mas seria uma pilha de mini-resenhas de mini-textos, o que seria cansativo para o leitor, já que a minha escrita carece da mobilidade e do teor orgânico e diversificado de Cortázar, do qual esse livro é prova viva.

domingo, 29 de agosto de 2010

62: Modelo para armar

Capa da edição atual, da Civilização Brasileira


            “62: Modelo para armar” é um livro um pouco complicado de se ler, por uma série de motivos. O primeiro é que muitos devem lê-lo (como eu li) esperando uma continuação de “O jogo da amarelinha”, livro que tem no capítulo de mesmo número as idéias centrais deste outro livro, posterior. Acontece que a semelhança não se dá com os personagens (infelizmente não vemos Oliveira aqui) nem com a organização do livro, embora ela não seja absolutamente contrastante: em “62” também se encontra a reflexão sobre o que somos e, é claro, as relações sociais e sentimentais, o verdadeiro ponto forte da obra cortazariana. Tudo isso sem divisão de capítulos. Os trechos são separados por espaços maiores entre cada bloco.

            O segundo motivo é que no início da narrativa aparecem espaços vazios, menções a coisas, eventos, pessoas desconhecidos, que só serão preenchidos mais adiante, finalmente dando sentido concreto ao que lemos no início (Frau Marta, as bonecas de monsieur Ochs, entre outros). Esse tipo de coisa é muito interessante, mas cria uma tensão e uma expectativa que de tão intensas (e não satisfeitas logo) fizeram a minha leitura truncada. Tive de reiniciar a leitura umas três vezes e quase desisti definitivamente, com um pouco de raiva do livro.

            O terceiro motivo é que dei outra interpretação ao capítulo 62 de “Amarelinha”, diferente da que Cortázar queria, creio: imaginei que ele criticava a tendência a pensar no ser humano como resultado de uma soma de genes, uma combinação meio aleatória e que não deixa espaços para sentimentos, pensamentos, emoções: seria tudo resultado de interações bioquímicas. Cortázar referia-se a outras interações: as humanas, isto é, entre humanos. Para a compreensão mais clara de “Modelo para armar”, recomendo a (re)leitura de “O jogo da amarelinha” e, se possível, a leitura de “Conversas com Cortázar” e, os nele mencionados, “Cristal com uma rosa dentro” e “A boneca quebrada”, que podem ser encontrados no livro“Último round”

            A idéia desse romance é de fato interessante: demonstrar como somos mais do que aquilo que somos individualmente; não o foco no indivíduo, como integrante de um grupo, de uma rede de ligações com outros, mas a própria rede como uma entidade da qual os indivíduos fazem parte, desempenhando ações que aparentemente são fruto de livre-arbítrio, mas que, a fundo, são parte do movimento conjunto, engendrando um complexo mas coerente sistema.

            A comparação pode soar bastante ridícula, mas em um ponto eu achei “62” parecido com certas telenovelas: os momentos reflexivos e introspectivos da maior parte dos personagens contrastam (“opõem-se” seria demais, um exagero, e não acho que o sentimento fosse esse) com outro tom quando seguidos, precedidos ou permeados por ações e atitudes e conversas estapafúrdias de dois argentinos bastante excêntricos: Calac e Polanco. Não acho que a única intenção de Cortázar tenha sido aliviar a tensão da narração, mas que haja também sabedoria nas bobagens de ambos, como o narrador sugere vez ou outra.

            Além dos argentinos, existem outros personagens, a maioria amigos, esses todos experienciando passeios pela Cidade, um lugar que se situa na zona da distração, no estado de porosidade em que sensações e estímulos dispersos formam algo novo. Uma sensação que acredito universal e que Cortázar foi capaz de explicar muito mais satisfatoriamente do que eu seria capaz se tentasse. Para compreendê-la é muito útil o já mencionado  “Conversas com Cortázar”, em que o argentino explica de maneira mais compreensível e sintética essa sensação.

            Como já disse, não há Oliveira ou Maga nessa obra, mas certos personagens por vezes nos lembram deles: A relação de Juan e Hélène lembra a dos protagonistas de Amarelinha, e há também outras mulheres na vida de Juan, assim como Oliveira teve Gekrepten e Pola. Mas isso se dá sem que Juan seja um outro Oliveira ou Hélène uma outra Maga (a bem da verdade, de certa forma me parece que Hélène está mais próxima de se parecer com Oliveira do que está Juan). No fim, o autor consegue sempre renovar seu tema favorito: o ser humano, seus questionamentos, suas buscas. Seja pelo kibbutz do desejo, seja por aquele quarto onde se tem de entregar certo pacote.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Conversas com Cortázar


Capa da edição atual, da Jorge Zahar
            É sempre bom encontrar livros que queríamos por um preço bem mais baixo, digamos, uns catorze reais a menos. Mas é melhor ainda se esse livro for muito interessante e, acima de tudo, se tratar de uma personalidade que nos encanta e desconcerta. Bom, falo no geral, no plural, porque acho que aconteceria o mesmo com todos que se aprofundassem nas leituras que faço. Mas, de qualquer jeito, pelo menos a mim é isso que Cortázar faz: encanta e desconcerta. Me impressiona de todas as maneiras.


            Vou escrever essa crítica bem informalmente – por isso já barrei, ali em cima, a ênclise – porque acho que destoaria do tom do livro que resenho se não fizesse assim. Falo de “Conversas com Cortázar”, um livro de entrevistas entre o jornalista uruguaio Ernesto González Bermejo e Julio Cortázar, que pelo tanto que já escrevi dele dispensa apresentações.


            A beleza do livro já começa pela capa: Uma foto em preto-e-branco de Cortázar com alguns envelopes na mão e uma bela arte no título dão uma aparência muito legal à capa desse livro, como se Cortázar estivesse nos aguardando, pensando previamente nas discussões que teremos nas páginas internas. Sim, porque como diz algum dos prefácios do livro, essa obra é uma chance de, de alguma forma, estar lá, durante as conversas, conhecendo um pouco mais de perto a grande mente de Cortázar.


            Há dois prefácios, um à edição brasileira e o prefácio do autor. O primeiro, escrito por Eric Nepomuceno, amigo tanto do entrevistador quanto do entrevistado, contém um erro: Nepomuceno se refere ao protagonista de “O jogo da amarelinha” como Bernardo Oliveira. Ou ocorreu um lapso momentâneo na ora do raciocínio ou Oliveira tem dois nomes, pois no livro o tratam, nas poucas vezes que seu nome é dito, por Horacio. Poderia ser um nome composto, mas Bernardo Horacio ou Horacio Bernardo não me parece um nome composto muito Cortazariano...


            Fora esse deslize, é um livro excepcional. Principalmente para quem quer compreender Cortázar mais profundamente, e não se agrada com textos críticos (nem procuro os que falem de Cortázar. Não admito que interfiram na minha interpretação de sua obra, afinal o próprio Julio queria a construção do livro pelo próprio leitor). É uma chance de saber, de fato, o que ele quis dizer, sem adivinhações de literatecos não interados com a feitura da literatura de fato. Mas Cortázar não é intransigente em seus depoimentos: é aberto a boas interpretações de suas obras, desde que contribuam para o entendimento das mesmas.


            Além de conversarem sobre literatura (diálogos interessantíssimos e muito esclarecedores sobre “O jogo da amarelinha” e “O perseguidor”, entre outros), o uruguaio e o argentino falam de Paris (Bermejo vivia lá, também, à época, exilado por conta da ditadura em seu país), sobre o fantástico (grandes momentos da conversa se desenvolvem sobre esse assunto), política, metafísica, ontologia, música... Apesar da divisão dos capítulos (artificial; Bermejo uniu quatro ou cinco conversas ao longo de anos em um texto corrido, dividido por capítulos) é difícil ver quando deixam um assunto para trás e ingressam em outro, porque o ritmo é fluido e, a despeito do clima um pouco formal, há a cumplicidade e a compreensão mútuas típicas de amigos.


            Há trechos em que, apesar da elegância e da descrição de Cortázar, ficam algumas críticas marcantes na memória: aos intentos de Todorov de descrever o fantástico e, principalmente, o silêncio acusador contra as atitudes políticas de Jorge Luis Borges.


            Eis um livro precioso para quem quer entender mais profundamente Cortázar e suas criações, suas convicções, suas frustrações. E, acima de tudo, as suas percepções invulgares. É mesmo como estar lá, um pouco escondido, no canto da sala, ouvindo aquela voz grave descrevendo e desenhando um novo mundo, de novos e mais conscientes homens.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Feliz aniversário, Cortázar e A auto-estrada do sul (da china)

- Hoje Cortázar completaria 96 anos. Boas festanças, cronópio cronópio!

- Na China, motoristas estão passando por um engarrafamento-monstro, há uns dez dias. E ele ainda pode durar mais... um mês. Isso lembra alguma coisa? Já pensaram se fizessem uma adaptação? "No começo, a moça do Chery Face havia insistido em fazer a contagem do tempo, se bem que, o engenheiro do Emgrand EC8 pouco estivesse ligando."

Nota: Acabo de ver que engarrafamento acabou hoje... só pra cortar o meu barato, né, trânsito chinês?

Adeus, Robinson e outras peças curtas

Capa da edição atual, da José Olympio


            Quando se fala em Julio Cortázar geralmente se fala de conto fantástico. É claro que essa é uma idéia generalizada da obra dele, que abarca muito mais elementos e, como já demonstrei em outras resenhas, pode até pender mais para o relato das relações humanas do que para o espanto do extraordinário. E não era só a temática do que escrevia que mudava, a forma que ele usava para expressar-se também variava. Por exemplo, em “Adeus, Robinson e outras peças curtas” reúnem-se quatro peças teatrais escritas pelo autor em diferentes épocas de sua vida.

            As duas primeiras peças se agrupam sob o nome de “Dois jogos de palavras” e são aquelas em que fica mais difícil encontrar algum tipo de metáfora com significado subjacente. Talvez tenha sido mesmo essa a idéia do argentino: expressar-se, sem ter compromisso com o social ou alguma outra causa. A primeira das duas peças, “Peça em três cenas” parece uma história sobre desencontros sentimentais, fugir daquilo que esperam de nós e de depois voltar a como éramos. Triste, de fato. A segunda é “A temporada das pipas”. Nela também há o estranhamento com os atos e falas dos personagens, mas em certos momentos há como uma lucidez, mais pungente porque vinda no meio da divagação, como no trecho em que Davi diz: "É bom ficar só. Aos poucos a gente começa a pensar. Não é fácil, porque a máquina costuma estar enferrujada. Mas aos poucos, primeiro uma idéia, depois outra, depois outra, depois uma ponte unindo as duas, a terceira passando por cima..." Nesta peça é mais fácil seguir o fio condutor dos eventos e algumas relações com a vida real (por falta de termo melhor para isso que vivemos) podem ser feitas, mas não sem risco de estarmos interpretando demais. Gosto da idéia de que Cortázar possa ter escrito essas peças dessa forma de propósito, para que ficassem mesmo muito abertas a interpretações.

            A terceira peça, em seguida, é “Nada para Pehuajó”. Escrita nos anos 70, a peça já mostra um Cortázar mais maduro, mais consciente, que parece escolher com mais cuidado as metáforas e alusões. A história pode ser simplesmente o que é ou pode ser mais, muito mais: uma crítica a instituições, à burocracia e até ao povo. Peça um pouco caótica, dada a quantidade bastante grande de personagens em cena, mas excelente.

            Fecha o livro o roteiro radiofônico de mesmo nome. Fã e profundo conhecedor da obra “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe, Cortázar propõe nessa peça a volta de Crusoé à ilha em que vivera durante anos. Acompanhado de Sexta-feira, o canibal que “salvara” e “civilizara”, Robinson vê-se surpreso em uma ilha que se modernizou muito e que já não mais reconhece como sendo “a sua ilha”. É a peça mais clara e mais facilmente compreensível do livro, desde que se tenha algum conhecimento da história do livro de Defoe. Uma bela e oportuna metáfora que é revelada ao fim do roteiro.

            Talvez a obra teatral de Julio Cortázar não seja muito extensa, mas é com certeza muito interessante, pela variedade de temas com que consegue lidar e pela maneira fluida com que os expressa.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Narraciones y poemas

Capa (Visor Libros / Granica)

Ecletismo pouco é bobagem. Cortázar não só era um cara multi-estilo em termos de literatura, mas também era multimídia. Escreveu, é claro, mas também narrou de outra maneira: com a sua voz.

"Narraciones y poemas" é um dos vários discos dele que andam por aí. Neste, é o próprio Cortázar que lê seus textos, e não há entrevistas entre as leituras. Em cerca de 29 minutos, Cortázar lê os seguintes textos, com sua voz grave e profunda:

01 - No, no, y no
02 - Elecciones insólitas
03 - Más sobre escaleras
04 - Álbum con fotos
05 - Los amantes
06 - Dadora de las playas
07 - Poema 1968
08 - Preámbulo a las instrucciones para dar cuerda al reloj
09 - Discurso del oso
10 - Aplastamiento de las gotas
11 - Cuento sin moraleja
12 - Viajes
13 - Los exploradores
14 - Historia

Se em nossos dias os áudio-livros estão se tornando populares, é interessante constatar o pioneirismo de Cortázar, que gravou narrações de seus próprios textos há décadas atrás. Pioneirismo pouco também é bobagem.

Nenhum texto é inédito, mas isso não importa: o que de mais valioso "Narraciones y poemas" nos proporciona é a sensação de estar um pouco mais próximos de Julio.

A biblioteca ideal de Horacio Oliveira e Rayuelas coloridas

Inauguro os posts sobre notícias que envolvem Cortázar com duas divertidíssimas, dignas de enormíssimos cronópios. A primeira é a elaboração da biblioteca ideal de Horacio Oliveira. A Librería La Central elaborou, neste link, uma lista dos livros que o protagonista de "O jogo da amarelinha" teria em sua estante. Publico a lista, com os títulos traduzidos, abaixo, mas vale a pena olhar o site da La Central, porque há um interessante texto introdutório.

Artaud, "Heliogabalo ou o anarquista coroado"
Baudelaire "As flores do mal"
Cervantes, "Dom Quixote de La Mancha"
Faulkner, "Enquanto agonizo"
Kierkegaard, "Doença mortal"
Michaux, "Antologia poética"
Musil, "O homem sem qualidades"
Spinoza, "Tratado da reforma do entendimento"
Verlaine, "Poemas"


 A segunda é este post, antigo, com mais de um ano, do blog "Vida Portenha". Leiam um trecho:

"(...) o Governo da Cidade de Buenos Aires convidou os portenhos a jogarem num dos 120 'jogos da amarelinha' criados pela artísta plástica Marta Minujín na Avenida 9 de Julio, no centro da cidade. Para poder jogar, devia se levar na mão um livro escrito pelo Cortázar."

Vale a pena ler esse post: as fotos são muito bonitas. Tá aí uma coisa realmente inspiradora!

Algumas notas...

- A categorização dos textos foi feita de acordo com a categorização estabelecia pela Galaxia Gutenberg quando elaborou a edição das Obras Completas (ainda incompletas...) de Cortázar: Contos, Teatro, Romances, Poesia e poética, Prosa vária, Obra crítica, Cartas e Entrevistas.

- Uso imagens de capas das obras por razões ilustrativas. Mesmo acreditando que esse uso não fere direito intelectual e/ou artístico algum, caso os autores se sintam lesados, por favor, entrem em contato e a remoção será feita.

- Tem alguma sugestão? Alguma crítica (construtiva e educada, por favor)? Elogio (oba!)? Deixe um comentário.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

As armas secretas


Capa da edição atual, da José Olympio
            Gosto de ler Cortázar porque me surpreende, porque parece zombar de minhas anteriormente tão firmes convicções sobre seu estilo. Sem invalidar tudo que sei – se bem que esse termo é insidioso em se tratando desse quebra-cabeça em forma de produção literária – muda o panorama que eu construíra. Não, quebra-cabeças têm só uma possibilidade de serem montados e se lhes falta uma peça acontece o enfado, a frustração. O que Cortázar escreveu é mais como um tangram: as peças são intercambiáveis e formam formas distintas. E se falta uma peça ainda podemos nos divertir, formando figuras mais simples. Até que achemos as que faltavam e aí completa-se o tangram e todos seus resultados possíveis estão disponíveis, bastando imaginação para descobri-los todos (se é que são em número finito).
            Mas divago, divago. Isso tudo serviu de preâmbulo para dizer que “As armas secretas” serviu para que eu me questione até que ponto Julio Cortázar pode ser chamado de um contista do fantástico. Claro, textos os contos de Bestiário e alguns dos que compõem Histórias de cronópios e de famas são inopinavelmente fantásticos, fantasiosos, seja lá o melhor nome que se possa dar para eles, que mais lhes faça justiça. Mas em “As armas secretas” parece predominar o humano, as relações sociais e os laços sentimentais.
            O primeiro conto, “Cartas de mamãe” tem a mesma temática de “A saúde dos doentes”, do livro “Todos os fogos o fogo”: Um morto e algumas cartas provocam desconforto e tensão interpessoal. Um final interessante, que não desagradará aos admiradores do Cortázar fantástico, que com algum esforço interpretativo podem avaliar de maneira diversa o final.
            “Os bons serviços”, em seguida, é outro conto sobre relações. Uma ingênua senhora toma parte em eventos que não compreende bem, mas que se insinuam mais claros para os leitores.
            “As babas do diabo”, terceiro conto do livro, é o mais parecido com o que Cortázar escreveu nos outros livros que citei acima. Conto famoso, bastante comentado e avaliado. É sobre um fotógrafo que acaba capturando o que não deveria com sua câmera e faz uma ampliação da foto, que pendura na parede de seu escritório. As estranhas coisas que acontecem com a ampliação acabam são apenas parte da grandiosidade desse conto, que tem na forma narrativa um grande trunfo.
            Em seguida, “O perseguidor” lida com um dos gostos mais declarados de Cortázar: o jazz. É a história de um jazzman de personalidade confusa, porém genial, que vê o que os outros não vêem e percebe o tempo de maneira diversa do comum. Apesar dessa característica fantástica, o que mais “pesa” no conto é a relação dos companheiros de música, das mulheres e do personagem narrador do conto com o referido músico, Johnny. Bruno, o personagem que narra a história, está escrevendo a biografia de Johnny, e essa relação intrigante dos dois dá a tônica do conto muito mais do que dão as percepções estranhas do jazzman. Um conto muito longo para os padrões do escritor argentino.
            Finalizando o livro, o conto que dá a ele seu título. “As armas secretas” é a história de um casal de jovens que tem um bom relacionamento, embora sempre haja determinada barreira entre eles que não conseguem transpor. A tensão cresce no fim do conto, e o foco da mesma desvia bruscamente para um ponto fora do centro do relacionamento dos dois. Uma história sobre como o passado afeta o presente, e como nem tudo que parece é.
            Assim como Cortázar, que tem muito mais a oferecer a seus leitores além de suas obras ditas fantásticas.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Todos os fogos o fogo


Capa da edição atual, da Civilização Brasileira
            É tão ruim ver essa página em branco como que debochando da minha incapacidade temporária de vencê-la... Agora é quase tão difícil de vencer essa força estúpida como foi à ocasião de resenhar “O jogo da amarelinha”. É que assim como “O jogo...” surpreende por ser diferente do resto da literatura que se leu anteriormente, “Todos os fogos o fogo” desarma a expectativa que se tem de encontrar em suas páginas um Cortázar fantástico (da literatura fantástica, fique claro, não da qualidade de composição) como em outras obras. Mas aí está o excepcional em Cortázar: é mudando que ele mantém a sua unidade.
            No livro encontramos oito contos de estilos variados, com histórias muito diversas entre si no conteúdo e na maneira de serem contadas. “A auto-estrada do sul” começa com ares típicos de Cortázar, com uma situação inusitada que se transforma em desconforto e tensão. Mas, quando tudo se encaminha para um final fantástico, vemos que a situação servia como símbolo de algo mais profundo, e muito mais humano. Em seguida, “A saúde dos doentes”, que talvez seja o conto mais próximo do fantástico que vemos em “Bestiário”, por exemplo: o poder da auto-sugestão serve como forma de brincar com os limites da realidade.
            “Reunião”, logo após, é um relato de guerra muito interessante e emocionante, na visão de uma figura importante da história, embora ainda não o seja no momento da narrativa. O conto seguinte, “Senhorita Cora” é um de meus favoritos, se não for o favorito: a relação de um adolescente com a enfermeira pouco mais velha que ele não representa somente as relações de conquista, mas também de amizade, solidariedade e esperança. Um conto que, além do conteúdo, tem uma forma genial, com as frases dos personagens se entremeando, de forma que é preciso perceber pelo contexto quem é que fala.
            O quinto conto é “A ilha ao meio-dia”, a história de um comissário de bordo que percebe uma ilha que nunca notara antes no trajeto de seus vôos. A ilha é sempre vista em torno do meio-dia e ele decide viajar até lá, para descobrir mais sobre ela. O final é intrigante e, pelo que vi na internet, eu fui o único a pensar que o encontro no final do conto é de Marini consigo mesmo (o que tornaria esse conto mais próximo do Cortázar fantástico). Depois, “Instruções a John Howell” lida com os limites entre fantasia e realidade, misturando os dois a ponto de não sabermos mais separar um do outro: um espectador de uma peça vê-se obrigado a participar dela como ator e envolve-se numa trama complicada.
            Fecham o livro “Todos os fogos o fogo” e “O outro céu”. O conto que dá título ao livro conta duas histórias em paralelo, que irão se encontrar de uma maneira muito peculiar em seus desfechos, ambas marcadas fortemente pelos relacionamentos amorosos dos protagonistas. “O outro céu” é um conto que eu precisei ler mais de uma vez para compreender melhor, pois o personagem transita entre lugares da Argentina e da França, provavelmente de maneira imaginária, mas sem explicação clara. É um conto sobre a acomodação à realidade e perda dos sonhos, eu creio.
            Agora percebo que talvez não haja tanta ausência de características fantásticas ao livro. Mas com certeza essas características desempenham papel secundário nas histórias e aparecem de maneira mais branda, dando espaço para que se saliente o aspecto humano das narrativas. E se Cortázar é fantástico, agora no sentido de excelente, é justamente por retratar com magnificência aquilo que é inerente ao ser humano, sua verdadeira natureza e paixões.

domingo, 22 de agosto de 2010

Bestiário

Capa da segunda edição, da Expressão e Cultura

            Reli, pela primeira vez, um livro de Cortázar completamente. O fiz porque lera o livro fazia já muito tempo e não queria correr o risco de ser injusto com ele por conta de falhas da memória. Mas me dei conta que será impossível resenhar minha leitura de “Bestiário”: a única leitura que fiz foi a primeira.
Todas as leituras a partir de então são releituras, formas de expandir aquele universo fantástico, de aprofundar-se nos enigmas do autor – aprofundar-se, mas não de descobri-los por completo, muitas vezes. A releitura contrasta ainda mais com a leitura porque agora sou leitor já experiente de Cortázar e reconheço mais seu estilo, seus métodos e suas maneiras de deixar implícito algo que talvez não seja crucial, mas que desempenha papel discreto porém importante na trama.
            “Bestiário” é um livro de contos, oito no total. O melhor a fazer é analisá-los individualmente e comentá-los, sem cair na besteira de acreditar que se estão juntos é porque o autor quis, com essa união, dizer algo obscuro. Como diz Remy Gorga Filho na orelha deste Bestiário, “se for assim, liquidamos de uma vez com toda a riqueza da ambigüidade, clara e inequivocamente desejada por ele”.
            “Casa tomada” é provavelmente o conto do livro do qual mais se falou. Um casal de irmãos tem parte de sua casa tomada e passam a viver no restante dela. É um conto do terror em relação ao desconhecido à primeira vista, mas pode denunciar o conformismo, a ausência de resistência contra imposições, contra os abusos e aquilo que tomam de nós.
            “Carta a uma senhorita em Paris” foi o primeiro conto de Cortázar que li, e vem na seqüência do livro. Um homem tem o hábito de vomitar, quase que soluçar, coelhinhos e isso se lhe torna um problema. É um conto de aparente candura no início, porém a situação converge para uma situação final surpreendente. Aqui o absurdo é conduzido também com naturalidade, apesar da surpresa.
            “A distante” parece ter um enredo adequado a uma adaptação para um episódio de “Além da imaginação”: a personagem sente que a outra de si, seu oposto, seu complemento, em outra parte do mundo. “A distante” mostra duas relações interessantes que desejo comentar. A primeira é com os palíndromos, construções interessantes de que Cortázar gostava bastante e demonstram a inteligência que tinha o escritor belga-franco-argentino. A outra é a semelhança com o texto “Uma flor amarela”, também de Cortázar, publica no livro Final de jogo. Aqui também há um outro em que a personagem principal está ligada, e o final também é trágico.
            Por falar em flores, nota-se também a relação de “Uma flor amarela” (a saber, li o conto em separado, mas não li o livro onde fui publicado) com o conto que vem em seguida em “Bestiário”: “Ônibus”. Todos os passageiros do 168 levam flores, exceto os protagonistas. Uma metáfora bem interessante por trás de um enredo que é quase um thriller.
            “Cefaléia” mostra a história de criadores de mancuspias (outra criação de Cortázar, bem como cronópios, famas e esperanças) e as dificuldades pelas quais passam. Além disso, é interessante a classificação de dores de cabeça que lhes acometem. Uma possível alegoria dos problemas que a ganância – ou a hipocondria – pode trazer.
            “Circe” é um conto que me lembra das crônicas de “A vida como ela é...”, de Nelson Rodrigues, pelo ambiente, pela história e pelo desfecho que redobra o peso que parecia ter sido aliviado dos ombros do leitor, que quase se acostumava a uma realidade confortável. O que há de tão terrível na filha dos Mañara, que já perdeu dois namorados em circunstâncias estranhas?
            “As portas do céu” também lida com o sobrenatural, mas além desse viés de análise há o do protagonista, que vê o amigo e a amiga quase como experiências a serem catalogadas. Claro, a ambigüidade está presente, como usual: viram o que viram, de fato, ou foi a bebida? Há um belo clima do “submundo” argentino nesse conto.
            O livro encerra com conto homônimo, que é muito mais profundo do que a existência de um tigre em uma casa, na qual vai passar um tempo a menina Isabel. Ao final de conta resta a pergunta: qual a noção de experimento que Isabel tem? Foi por vingança? Foi por justiça? Foi por querer observar hábitos de animais maiores? Um conto muito interessante, no qual o mundo infantil é relatado de forma peculiar.
            “Bestiário”, então, é um livro que pode, sim, ser lido. Mas deve ser principalmente relido, por acrescentar maior relevo, mais profundidade e diversidade ao conhecimento cortazariano do leitor. É possível apreciá-lo como um delicioso bombom. E, nesse caso, não é preciso temer o conteúdo-recheio: é dos melhores e mais saborosos.

Créditos para a imagem que ilustra o header do Morellianas

O Morellianas tem orgulho em ter o seu header (ou banner, ou como queiram chamar aquela imagem no topo da página do blog) ilustrado por uma arte do caricaturista argentino Julio Ibarra, que já teve seu trabalho publicado em vários meios culturais.
Além do fato de este outro Julio ser muito talentoso, sua arte é criativa, cativante e cheia de vida e cor (ele maneja muito bem as tintas da aquarela), o que me faz pensar que Cortázar gostaria muito de como Ibarra o retratou.
Julio Ibarra gentilmente permitiu que eu usasse a sua ilustração no header. Gostaria de colocar um link para os sites dele na lateral do blog, mas ainda não descobri como fazer isso nesses templates novos do Blogspot. Seguem abaixo, então, os links, além de um dos meus desenhos favoritos dele, retratando Julio Cortázar e Carol Dunlop. Para versões maiores dos trabalhos desse grande artista, acessem seus sites.

Gracias, Julio!

Julio Cortázar, esposa y gato




Site:
http://www.julioibarra.com.ar/
 

Blogs:
http://ibarrahumor.blogspot.com/
http://julioibarracaricaturas.blogspot.com/
http://julioibarrailustraciones.blogspot.com/
http://julioibarrapinturas.blogspot.com/

sábado, 21 de agosto de 2010

Histórias de cronópios e de famas

Capa da edição atual, da Civilização Brasileira

“Histórias de cronópios e de famas” é um ótimo livro pelo qual começar a ler Cortázar, para ter um primeiro contato com o estilo de texto desse cidadão do mundo.

O livro começa, como todos os outros, pela capa (exceto os que já não a tem, mas um dia eles próprios já assim começaram). E a capa da atual edição é muito atraente, bonita, colorida. Predomina o verde, mas há tantas cores como em um caleidoscópio ou um cristal translúcido bem iluminado. Uma faixa preta à meia altura anuncia o sonoro título da obra.

Dando crédito ao livro, seja pelos elogios que alguém nos fez dele (ou que fizemos aos seus potenciais futuros leitores) ou por sua irisada capa, descobrimo-lo dividido em quatro partes, seções de diferentes de um mesmo todo, cada uma com seu particular sabor, mas todas temperos intensos: “Manual de instruções”, “Estranhas ocupações”, “Matéria plástica” e uma homônima do livro, “Histórias de cronópios e de famas”.

“Manual de instruções” tem um título que explicaria seu conteúdo por completo, não fossem as atividades às quais instrui serem incomuns de se ver em manuais: sentir medo, chorar, matar formigas em Roma (a propósito, o livro foi escrito em uma época em que Julio morava na capital italiana), dar corda em um relógio e subir escadas. A tudo isso Cortázar se dispõe a instruir o leitor, com uma fina ironia e uma crítica à automatização do ser humano; afinal, quem precisaria de instruções para subir escadas?

Em seguida, “Estranhas ocupações” relata as aventuras de uma família que gosto de ver como a versão cortazariana da Família Addams, tanto por suas esquisitices (um patíbulo no meio do quintal, perder cabelos só pelo prazer de encontrá-los) como pelo perigo das atividades (pousar um tigre certamente requer coragem) e, acima de tudo, pela simpatia e caráter inofensivo.

Segue-se “Matéria plástica”, cheia de um Cortázar variado e genial, fabulador e fabuloso. É a seção mais extensa e diversa; é onde se encontra um Cortázar a favor dos direitos das bicicletas e empático com as gotas que se agarram para não morrer. Textos inesquecíveis e marcantes por toda a seção.

Por fim, “Histórias de cronópios e de famas”. Essa é a seção mais simpática e encantadora do livro. São histórias que relatam comportamentos e hábitos de três tipos de criaturas saídas da imaginação de Cortázar: os cronópios e os famas do título e as esperanças. As últimas são em geral apáticas e não agem, deixam-se levar pelas ocasiões e as pessoas. Os famas são racionais, organizados e metódicos, mas não obrigatoriamente maus. Os cronópios são sinceros, alegres e desatentos e inocentes. Poderiam ser personagens de histórias infantis (além de tudo, Cortázar disse que são pequenos, minúsculos, e verdes), e de fato acredito que até crianças possam ler essas histórias, mas basta imaginar que cronópios, famas e esperanças são conceitos para classificar impunemente e de maneira bastante certeira, ainda que um pouco genérica, boa parte das pessoas do mundo. Quantos não conhecemos que verificam tudo em uma viagem; que nada fazem de suas vidas; se perdem e perdem as chaves de casa ou a noção do tempo mas são muito felizes com essa sua irreflexão?

Quando se fecha, então, a capa final do livro, revendo aquele verde, fica aquela sensação de querer mais encantamento, mais maravilha, mais sonho e de conhecer mais a obra de Cortázar.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Prosa do observatório

Capa da edição atual, da Perspectiva

Já expliquei, em meu texto sobre “O jogo da amarelinha”, a problemática de um texto que se proponha a avaliar um livro de Julio Cortázar. E se já é difícil avaliar um livro cujo conteúdo é claro de se definir (por exemplo, “Bestiário” é um livro de contos e “O jogo da amarelinha” é um romance – cortazariano, isto é, muito inovador, mas ainda assim um romance) o que se pode esperar de uma obra que não encontra iguais na produção de Cortázar?


“Prosa do observatório” é um enigma mais obscuro dentro do grande ponto de interrogação (tanto pelo que é como pelo que provoca no leitor) que é o conjunto da obra desse fabuloso escritor argentino.


Cortázar e sua primeira esposa viajaram, em 1968, para a Índia. Lá, ficaram na residência do então embaixador mexicano, Octavio Paz¹. Em Jaipur, conheceram o observatório astronômico construído por um sultão do século XVIII, Jai Singh. Cortázar, então, fotografou a fascinante arquitetura marmórea do local. Mais tarde, as fotos foram publicadas ilustrando um texto breve porém sinuoso: este “Prosa do observatório”.


É difícil definir um livro assim: com tantas páginas em que só há fotos quanto páginas escritas e quanto páginas vazias. Não é um conto, não é um romance, não é um ensaio, não é um álbum de fotos, não é um relato de viagem... Ou, por outra: é tudo isso e mais. É Cortázar.

As imagens são maravilhosas, não só pela forma das estruturas retratadas, mas também pelos pontos de vista escolhidos por Cortázar; algumas chegam a ser abstratas, convidativas à divagação. No texto, curto mas eloqüente, convergem e convivem estrelas e enguias, pesquisadores e astrônomo. A maravilha do livro, o seu inexplicável encantador, é como Cortázar consegue urdir essa relação-múltipla, como a harmoniza e a faz fluir ritmadamente.


O cuidado que se precisa ter, entretanto, ao ler o livro, é deixar-se flutuar na corrente dele, não tentar passagem forçada por entre suas partes complicadas e mais obscuras, aceitá-las, passar por sobre elas com calma e deleite, compreendendo que há sempre um mistério em enguias, estrelas, e livros de Cortázar.


¹Paz recebeu o Nobel de Literatura em 1990 e faleceu no ano de 1998. Cortázar publicou um texto sobre uma das obras de Paz (“Libertad bajo palabra”) em livro publicado no final da década de 70. Para detalhes, veja CORTÁZAR, Julio. Octavio Paz: Libertad bajo palabra. In: ROGGIANO, Alfredo (ed.). Octavio Paz. Madri: Espiral/Fundamentos, 1979. P. 107-109

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O jogo da amarelinha


Capa da edição atual, da Civilização Brasileira
           Fazer uma resenha, uma crítica, uma avaliação, ou seja lá o nome mais apropriado que tiver o que intento fazer agora, sobre “O jogo da amarelinha” de Julio Cortazar é uma das tarefas mais complexas, porém deliciosas, a que alguém pode se dispor. E foi por esse preciso motivo que sugeri que inaugurássemos, Gabriel e eu, este Morellianas (nome também inspirado pela obra que comentamos) com nossos pontos de vista sobre esse livro.
            A empresa é difícil por tantos motivos como os que fazem de Cortázar mais que um gênio (adjetivo que Cortázar talvez chamasse de “palavra cretina”), o criador de uma nova espécie de expressão para a qual não há nome e a que se pode chamar, incorrendo em uma injustiça limitante da obra do autor, de “nova forma de literatura”. Mas não é literatura o que encontramos nesse “O jogo da amarelinha”, nem mesmo uma literatura em nova forma. É mais: Cortázar engendrou e tornou possível a interatividade da trama em um nível ainda não superado nos dias de hoje e sua alardeada interatividade digital. E o paroxismo da interatividade cortazariana deu-se (e ainda dá-se, visto que, para Cortázar, o tempo é mutável e relativo) nesse livro.
            E se a obra de Cortázar não é literatura, pelo menos não a convencional, eu não poderia construir uma crítica literária das convencionais. Por esse caráter diferencial dos escritos do maior contista latino-americano é que recomecei estas linhas depois de já estar na metade das idéias. Ler Cortázar é questionar tudo o que se leu antes e perguntar se aquelas obras têm mesmo o mérito que se lhes atribuem. Inclusive as que nós mesmos criamos.
A obra toda de Cortázar poderá aparecer avaliada mais abrangentemente aqui nas nossas Morellianas futuramente, já que somos, Gabriel e eu, grandes admiradores do autor. Porém, para começar, sugeri uma crítica compartilhada do mesmo livro, o que espero que agrade o espírito inovador de Julio Florencio. Apresentaremos avaliações de dois caminhos que conduzem, ambos, do início ao fim da obra, embora percorram itinerários diferente. A mim coube a leitura na ordem padrão, e a Gabriel a leitura “salteada” sugerida por Cortázar.
O livro é dividido em capítulos essenciais e prescindíveis. Li “O jogo...” como se leria qualquer outro livro, dos mais lamentáveis aos mais próximos do sublime, contrariando a sugestão de Cortázar para subverter a ordem natural das coisas. O benefício dessa forma de leitura é a maior clareza com que se chega ao fim da história central, porém perde-se um pouco da força dos trechos prescindíveis, que, lidos mais tarde, à parte do texto “fundamental”, podem não nos fazer lembrar a que mesmo se referem, a que evento estão ligados, o que explicam. Lendo dessa forma e ignorando os capítulos prescindíveis, a história fica em aberto, deixando ao leitor uma outra forma de interatividade, a de imaginar o seu final favorito. Ler dessa forma e, em seguida, caminhar com vagar pelos capítulos prescindíveis dá gosto como comer uma fruta madura recém colhida, pois esses capítulos são, na maioria, breves e espirituosos.
            O enredo do romance (se é que se pode classificar qualquer coisa que Cortázar tenha escrito como se classificaria algo feito por escritores comuns) já foi definido de diversas formas, sendo a mais injusta, a meu ver, a versão que dá conta de que o livro é sobre o próprio livro. O livro não discute a si mesmo, não é sua razão de ser, seu fim. Apesar de jogar – e essa é uma palavra-chave em toda obra desse cidadão do mundo: jogo – com as formas cristalizadas da produção literária, questionando e mitigando certezas e dogmas literários, isso é secundário. A prova? Pergunte quantos leitores da obra (e, ipso facto, seres inteligentes) se encantaram com a descrição de um beijo ou se emocionaram com a carta de uma mãe a um filho morto. “O jogo...”, é emocionante porque o drama da busca de Horacio (honde hestará ho que hele procura hem suas divagações honipresentes?), a ignorância e o sofrimento de Maga, as discussões sobre jazz, pintura, política e metafísica d’O Clube e tudo o mais que encontramos nas mais de 600 páginas do livro (número que não faz a leitura cansativa ou maçante) são coisas da vida: da minha, da tua, da dele e de todos. É isso. O assunto do livro, o enredo desse livro que muda vidas, se não é injusto limitá-lo a um só tema, é a própria vida e suas vicissitudes. E esse é o encanto do livro, isso é o que o faz conquistar talvez poucos mas tão fiéis leitores-jogadores: Todos nós somos como Horacio, buscamos algo que não sabemos ou não queremos definir, para prolongar a mágica busca, por nosso interior e também exterior. De passo em passo, num só pé, com cuidado para não perder a pedrinha, alcançamos o céu. Ou pelo menos alcançamos mate e batatas fritas.