quinta-feira, 15 de março de 2012

Le Ragioni della Collera

Estojo de Obras Completas, volume IV: Poesía y poética

“Julio Cortázar, contista argentino do gênero literário do Realismo Fantástico”. Quantas vezes já lemos isso por aí? Não que seja mentira, mas está longe de ser a verdade. Para começar pelo fim, o rótulo literário é muito restritivo!  Realismo fantástico, é? Com “Rayuela” já botamos abaixo tanto isso do Realismo Fantástico como isso de contista – seu livro mais famoso e laureado é um romance e não tem muita coisa típica do Realismo Fantástico . E, apesar de se considerar argentino, Julio, que nasceu na Bélgica e depois recebeu a cidadania francesa, era na verdade um cidadão do mundo. Sua casa era em qualquer lugar em que pudesse refletir sobre a existência humana.
Mas, para mim, o principal erro dessa afirmação parece mesmo ser isso de “contista”. Teatro, romance, textos políticos, poesia. Poesia! Me digam aí se Julio não é, acima de tudo, poético. Mesmo a sua prosa tem muito de poesia: a sonoridade, os parágrafos quebrados para dar o ritmo… Não se escandalizem, mas estou cada vez mais propenso a ver Julio, acima de tudo, como um poeta.
Acabo de reler, para fazer este texto, “Le Ragioni della Collera”, (na verdade, sua edição “enxuta”, sem os textos que já aparecem em “Salvo el Crepúsculo”, dentro da coleção Obras Completas), e achei um de seus melhores livros de poemas. Talvez o melhor. Não sei o quanto dessa predileção por “Le Ragioni della Collera”, em detrimento de outros “poemários”, não é responsabilidade do leitor mais experiente que sou agora. Mas, de qualquer maneira, é um ótimo livro, que desautoriza Julio, que nunca acreditou muito na qualidade dos seus versos.
O livro abre com uma carta aberta de Cortázar a Gianni Toti, tradutor dos poemas para o italiano (que, inclusive, escolheu o título do livro), em que JC Cita sua produção de poemas, mas diz que “nunca pensé en publicar” (exceto “pecado de juventude en forma de sonetos”; ou seja, o livro “Presencia”). O método de composição do livro foi meio cronopial: Julio deu a Gianni alguns poemas, para que escolhesse traduzir alguns, mas Gianni traduziu todos, surpreendendo Cortázar. Alguns entraram, outros saíram, mas foram basicamente os poemas que JC deu a GT que estão no livro.
Um dos poemas mais sensacionais aparece logo nas primeiras páginas. Chama-se “Se le lengua la traba”. Vale a pena reproduzir inteiro, porque é sensacional. Uma obra-prima desse admirador de palíndromos e jogos de palavras:

Se le lengua la traba

Cuando oigo decir de una lectura que
tiene el hábito de la persona, me siento
pensado a inclinar bien de ella.

AVELLÁS NICOLANEDA
Mueven las ganas y blancan
en dos jugadas. ¡La fresca que repausa!
Salgamos todos a cazar
los rinopótamos y los hipocerontes. Pero, ay,
tanto va el rompe a la fuente
que al fin se cântaro…
¡ ¡La trata quiere saber de lo que se puebla! ¡ (Cabildo
del grito abierto.) Sí, en los niños
los únicos argentinos son los privilegiados. Pues esta tierra
no estuvo nunca atada a la bandera
de ningún vencedor de carros. Y Noble
nos puso como a un dios sobre un tábano despierto
para picarlo y tenerlo caballo.

(Usted empieza cuando el espectáculo llega,
de manera que mejor
que no te hermás, metano.)

Alguém aí lembrou do capítulo 18 de “Rayuela” e seu “Aldley Huxdous”? “Avellás Nicolaneda” ficou ótimo!
(Acabo de descobrir, no artigo “Habla coloquial y lengua literaria en las letras argentinas”, de Rodolfo Borello, que o livro chegou a ser publicado em espanhol, com o título de “Razones de la cólera”, entre 1950 e 1951.)
Os dois (curtos) poemas seguintes, me parece, focam na estranheza. “Tan inútil todo”, na estranheza de se ver distante dos outros: enquanto os filhos estão felizes, o pai olha para as colheres ou um torrão de açúcar. Em “Zoo” a estranheza é de si mesmo: os órgãos são animais, que andam pelo corpo, e têm por “bestia máxima” o coração.
Temas históricos e religiosos aparecem aos montes. “Juana ante su señor” (poema forte, duro, com tom de desalento), “Los iconoclastas” (a destruição das representações negativas), “La empusa” (criatura da mitologia grega) , “Voz de María” (que apresenta a voz da mãe de Jesus sobre a crucificação) e “Último círculo”, poema intenso, complexo, com referências clássicas, que nos dá o belo trecho:

                        Esto que llamo mi alma
tienta el espacio como una copa de árbol

Alguns outros versos soltos, porque já estou cansado de escrever tão linearmente:

Espejo feroz, ¿es necesario que me tires a la cara
la copia de este mundo?
(“Los espejos la tiranía”)

En realidad lo importante es lo que no hicimos
(“Nos hemos visto antes en alguna parte”)

cómo asir esa sombra de tu vida que en mi memoria pasa
(“Cura de espantos”)

Os mortos são tema de dois poemas: o primeiro é “Réquiem”, para Bosie, amante de Oscar Wilde; doce homenagem, bonito poema (como curiosidade, o poema cita os fios da Virgem. “Pero los hilos de la Virgen se llaman también babas del diablo”, diz em certo conto…). O outro, que fecha o livro, é “La abuela”, escrito para sua avó:

Te veo y soy pequeño y soy yo mismo, y nada impide que el pequeño y el hombre te den el mismo beso y se refugien en tu abrazo.
(...)
Y el primero que muera sabrá que nada muere
y que la perfección reinó en su día.

O universo da morte também aparece em “La lección”, se mesclando com o mundo do sono e dos sonhos.
Outros poemas dignos de nota são “Viaje y vivo retorno” (o tema da transição ôntica: “no beber te, beberse te”), “Discurso del método” (bonito poema, em que se quer que a memória não falseie os fatos), “Crónica” (antes a morte do que uma existência em que é preciso aval de um doutor para ser beijado e em que todos os doces são cobertos de sal), “El huésped” (curiosa construção; estrofes com parênteses e sem parênteses alternadas), “Rue Montmartre” (poderosa descrição da chuva como algo podre – ainda assim, é simpática) e “Nocturno”, que tem alguma semelhança com “62. Modelo para Armar”:

es despertarme a plena noche, barrido
por un viento que nace de tu pelo
dormido junto a mí, tan lejos

Por fim (prometo que já estou acabando, não se desesperem), quero comentar “Entre esto y aquello”, um dos mais intensos poemas do livro. Trata-se de um poema sobre o espaço
el espacio
cuchillo de cristal

 sobre o vazio
                               que me vacía los bolsillos me roba las ciudades

sobre o qual Julio decreta:
                         espacio
 cáncer de lo uno                           

Se você que me lê quer começar a descobrir os poemas de Julio Cortázar, talvez deva começar por este “Le Ragioni della Collera”, por sua diversidade e por sua qualidade indiscutível.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Reler Cortázar

                Originalmente, escreveria sobre a experiência de reler “62. Modelo para Armar”. Mas o tempo foi passando, foram aparecendo coisas que me tomaram tempo, e, quando dei por mim, já tinha passado demasiado tempo para fazer um post sobre a experiência, que já não estava mais “quente” na minha memória.
                Isso estava me frustrando, e talvez até tivesse escrito o texto mesmo assim, redigindo de qualquer jeito, só para cumprir um compromisso que me impus. Ainda bem que apareceu por aqui o comentário da Cláudia (aqui, ó), que me fez reler “Em Nome de Bobby”. Isso me fez pensar num texto mais abrangente, sobre a reler os textos de Cortázar em geral.
                Li muita coisa do Julio, mas reli pouca coisa. Um pouco disso é porque são tantos livros que ele escreveu que se leva muito tempo até ler todos (mesmo só os “todos” que se pode achar no Brasil) para então começar a reler. Um pouco, também, porque ler Cortázar – pelo menos para quem se interessa a fundo pelo seu modo ver o mundo e de retratá-lo – é muito mais enriquecedor se vamos atrás de leituras que o influenciaram, impressionaram: por causa de seus textos, li “A História de O”, “História do Olho”, “O Pai Goriot” (“un drama sin Edipos, sin Rastignacs”, diz o capítulo 62 de “O Jogo da Amarelinha), estou lendo a versão traduzida de “The Ginger Man”, do Donleavy (“Sexta-feira Triangular”, numa tradução de título bem curiosa), e ainda tenho na minha lista, entre outros, “Paradiso”, do Lezama Lima.
E outro pouco, que não é tão pouco assim, é porque nada se compara à primeira leitura de uma obra do Julio. A primeira leitura é toda maravilhar-se e estranhar aquele universo aparentemente igual ao nosso, mas em que as leis são um pouco torcidas – e essa torção acontece sem aviso. E o que torna esse universo fantástico é justamente o estranhamento que nos preenche, mas que não afeta os personagens. Um tigre vivendo é uma casa é incômodo, mas não incrível para a família que lá habita.
As releituras são mais cerebrais, e aí a gente deixa de sentir tanto o texto, e começa a pensá-lo, a analisá-lo. Não dá pra sentir o mesmo estranhamento. Já sabemos o que acontece, e então começamos a traçar relações, a cruzar dados, a buscar influências da vida real – nunca mais vou ter aquele mal-estar lendo “Casa Tomada” depois de tanto ter lido que é uma referência à ditadura argentina.
Então, para aproveitar uma releitura de Cortázar é preciso fazer um esforço para não analisar o texto, para se livrar desse cacoete intelectual. Cortázar insistiu que seus textos, não só os em verso, eram poéticos, tinham certo ritmo. Também disse, numa entrevista (não lembro se ao Bermejo ou ao Prego), que ele achava que Horacio não se atirava ao final do romance. E quantos releitores devem haver por aí que buscam a certeza de alguma coisa nos textos que leem. Que voltam á página um para investigar, para desvendar. Apesar de serem bem compostos, os textos cortazarianos, pelo menos para mim, valem mais pelo que têm de sentimental, de instintivo, de animal. O que me fez começar esse blog é que seus textos são pulsantes, vivos.
Claro que releituras também podem ser boas, desde que a gente tenha em mente que o importante é apreciar o texto, não tanto entendê-lo. Por exemplo, “Em Nome de Bobby” agora é um conto mais marcante para mim, porque fala da infância, tema que o Cortázar trata com importância (“Final de Jogo” é um dos meus contos favoritos; acho que poucos contos retratam a infância de maneira tão interna).
Outro exemplo, esse em maior escala: “62. Modelo para Armar”. Não sou eu o único a ter saído tonto da leitura desse romance cortazariano. Da primeira leitura, tinha ficado apenas com impressões e algumas ideias vagas. Clima de escuridão, romances cruzados (um “quadrado” amoroso?), um trocadilho em francês, um ambiente à margem ou além do resto (a Cidade), sexo sáfico…
O curioso é que, mesmo relendo, não fica mais fácil explicar, comentar, resenhar “62”. Continua sendo o livro mais complexo, mais pesado, mais sombrio de Julio Cortázar. Mas é uma releitura que se presta aos meus desejos de leitor-cronópio: uma releitura menos cérebro e mais clima, sentimento, intuição.
Que possamos sempre (re)ler assim o que o Julio escreveu: ordenando o caos apenas o suficiente para nos admirarmos de como ele não precisa ser compreendido para nos encantar.