domingo, 29 de julho de 2012

Cortázar e a tradução

                Já escreveram livros sobre muitas coisas da vida de Julio Cortázar. Jaime Correa escreveu 208 páginas sobre o Cortázar acadêmico (“Cortázar, Profesor Universitario”); Jorge R. Deschamps escreveu sobre a juventude de Julio na Grande Buenos Aires (“Julio Cortázar en Banfield”). Mas sempre me intrigou que ninguém tivesse escrito algo mais longo sobre a relação de Cortázar com a tradução – não só sobre as traduções que ele fez, mas também sobre como ele via o ofício de traduzir.
                Há tempos eu pretendia escrever um texto assim, mas esperava por uma chance de reler todos os livros do Julio para poder escrever de maneira mais organizada e completa. Mas já que minha amiga Janaína Baladão vai escrever um texto sobre o assunto – e confio que será mais linearmente organizado que o texto que eu escreveria – e precisa de referências, vou deixar aqui algumas notas, para ver se servem de alguma coisa.
                Como já é de se esperar, é bem possível que a maioria destas notas esteja incompleta ou até incorreta. Mas a Jana é escolada nisso de pesquisa e, espero, vai dar um jeito de transformar essa simpática bagunça num respeitável (mas talvez menos simpático) trabalho acadêmico. Muito do que eu achava que havia publicado no Morellianas ou guardado em notas manuscritas não está em lugar algum. Então não resta muito além da memória e do “achismo”. Vamos nessa.
                Ainda jovem e na Argentina, Cortázar já ganhava uns trocados com tradução - indiretamente. Quem nos conta essa é Alberto Cousté, no livro “El Lector de... Julio Cortázar” (páginas 40 e 41):

“(incluso las primeras traducciones que Julio consiguió que le fueran encargadas las hacía en realidad Herminia, pero debía firmarlas inevitablemente su hijo para poder cobrarlas a un precio razonable: como un trabajo y no meramente como «el pasatiempo de una señora en sus ratos de ocio»)”

                Ainda na Argentina, passou em uma prova de Língua e Direito e exerceu profissionalmente a tradução entre 1948 e 1951 (dados da Encyclopedia of Latin American literature, página 422). Também na Argentina, traduziu para a Editorial Sudamericana. (Cousté, página 49)
                A partir de 1952, quando já vivia na Europa, trabalhou como tradutor para a UNESCO. Tenho a impressão de que ele não era lá grande fã do trabalho e que também não ganhava lá muito bem com esse ofício (vide as cartas que foram publicadas há uns meses pela revista Piauí; JC chega a escrever que os tradutores permanentes eram “escravos o ano inteiro”).
                Acredito que a coisa era bem diferente com as traduções literárias, ainda que elas também dessem bastante trabalho. Claro, Julio era um escritor, tudo que o estivesse na área da literatura deveria lhe parecer muito mais simpático do que aquilo que vinha do campo da geopolítica – pelo menos nessa época, antes de ele descobrir Cuba e Nicarágua.
                Na sua edição de “Rayuela” para a editora espanhola Ediciones Cátedra, Andrés Amorós publicou uma lista das traduções literárias que Cortázar fez (publiquei a lista traduzida aqui no Morellianas, neste post). Dá para imaginar que Julio ficaria muito mais contente traduzindo Poe (1300 páginas, segundo a página 50 do livro do Cousté! Uau!) ou Yourcenar – escritores que citou e até homenageou em algumas de suas obras – do que atas, ou seja lá que outros tipos de documentos saem de encontros de órgãos como esse.
                Talvez se possa achar um material muito vasto sobre a relação de Cortázar com a tradução em seus livros da “Obra Crítica”, especialmente nos volumes 2 e 3, mas um livro que tem dois textos com muito a dizer sobre o assunto é o primeiro tomo de “A Volta do Dia em 80 Mundos”. O primeiro desses textos é “Noite nos Ministérios da Europa”, que tem, como personagem, um tradutor e, como ambiente, um lugar de debates e decisões políticos. Parece o próprio Cortázar tradutor como personagem do Cortázar autor. Um conto cheio de estranhamento, alheamento até, inserção numa ordem não disponível a todos. Por isso, o tradutor protagonista e o ambiente me lembraram bastante de “62. Modelo para Armar”
                O outro texto é “Não Há Pior Surdo que Aquele que”, em que JC desce o sarrafo na tradução. Cito trecho da página 153 de “A Volta ao Dia em 80 Mundos – Tomo I”:

“Pensei paralelamente na influência neutralizadora e desvitalizadora das traduções em nosso sentimento da língua. Entre 1930 e 1950 o leitor rio-platense leu quatro quintos da literatura mundial contemporânea em traduções, e conheço demasiado o ofício de intérprete para não saber que a língua se reduz ali a uma função antes de tudo informativa, e que ao perder sua originalidade se amortecem nela os estímulos eufônicos, rítmicos, cromáticos, escultóricos, estruturais, todo o eriçamento do estilo que aponta para a sensibilidade do leitor, ferindo-o e espicaçando-o através dos olhos, dos ouvidos, das cordas vocais e até do sabor, num jogo de ressonâncias e correspondências e adrenalina que entra no sangue para modificar o sistema de reflexos e de respostas e suscitar uma participação porosa nessa experiência vital que é um conto ou um romance.” [Grifos meus]

                E, mais adiante, outra porrada nos devotos de São Jerônimo:

                “(...) antes das influências negativas da escola e das traduções (...)”

                Por outro lado, no volume II de “A Volta ao Dia...”, há uma espécie de retratação, pelo menos parcial. Em “Tombeau de Mallarmé” (páginas 115 e 116) podemos ler:

“Dos traidores refugiados consuetudinariamente no ofício da tradução, muitos dos que traduzem poesia me parecem avatares desse Judas sofisticado que atraiçoa por inocência e por amor, que abraça sua vítima entre oliveiras e tochas, sob sinais de imortalidade e de passagem. Todos os recursos são bons quando no fundo da retorta alquímica brilha o ouro de que falava Píndaro na primeira Olímpica; por isso se sabe de Judas alquimistas que não vacilam em esconder um grão de ouro no chumbo, simulando a transmutação para o príncipe cobiçoso, enquanto continuam procurando-a solitários e, quem sabe, encontrando-a. Terreno equívoco e apaixonado onde se passa da versão à invenção”. [De novo, grifos meus]

                Bonito, não? (Julio culto como sempre, citando indiretamente o epíteto “traduttore, traditore”.) Era quase de ficar contente, não fosse em “A Urna Grega na Poesia de John Keats” Cortázar escrever “(...)mediação degradante das traduções” (Obra Crítica, volume 2, página 34). Vamos dar um desconto: aí Julio era muito jovem (ah, essa mania de atribuir todas as injustiças que alguém comete à juventude...). Já em seu famoso “Alguns Aspectos do Conto”, Julio não agride as traduções: escreve, simplesmente, “pouco a pouco, em textos originais ou mediante traduções (...)”, sem qualificá-las com algum adjetivo pouco elogioso.
                Mas essas opiniões de Julio podem ser tudo, menos carentes de argumentação. Isso porque em outro texto famoso, “Do Conto Breve e Seus Arredores” (ibidem, 349), JC nos explica um pouco desse seu ranço, como diria meu avô português, com a tradução:

“Minha experiência me diz que, de algum modo, um conto breve como os que procurei caracterizar não tem uma estrutura de prosa. Cada vez que me tocou revisar a tradução de uma de minhas narrativas (ou tentar a de outros autores, como alguma vez com Poe) senti até que ponto a eficácia e o sentido do conto dependiam desses valores que dão um caráter específico ao poema e também ao jazz: a tensão, o ritmo, a pulsação interna, o imprevisto dentro de parâmetros pré-vistos, essa liberdade fatal que não admite alteração sem uma perda irreparável.”

                E, por falar em revisar traduções... Em algum lugar de “Correspondencia”, comenta-se que Julio, ao receber a tradução de “Rayuela” para o inglês, analisava as escolhas de Gregory Rabassa, o tradutor. Já nas páginas 80 e 81 de “El Lector de... Julio Cortázar”, Alberto Cousté nos conta:

“(…) una rápida selección de las fervorosas lecturas que hizo para la misma época, de autores como Felisberto Hernández, Juan Filloy, Hermann Broch (¡advierte hasta las deficiencias de traducción de La muerte de Virgilio, sin disponer del original y pese a su precario conocimiento del alemán!) (…)”.

Entre uma mordida e um assopro nos tradutores, Julio sempre se deu bem com eles: Gianni Toti (que escolheu o título do livro que traduziu), Silvia Monrós-Stojaković (que trocou cartas às vezes divertidas, às vezes densas com ele e Carol), Paul Blackburn (que ia até visitá-lo em Saignon, valendo até uma citação dentro deste já longo parêntese: “(...) emergem Paul Blackburn e Joan Miller que se dedicam de imediato a acampar ao lado de minha casa e me beijocar estrondosamente”; “Último Round”, tomo I, página 18), – e provavelmente outros -, receberam seu carinho e desfrutaram sua amizade, o que prova que, pelo menos, não era daqueles autores que consideram os tradutores uma subespécie... Tem, inclusive, uma frase que circula por aí como sendo dele (mas não lembro se é) que é um conselho aos autores que necessitam “ventilar” o estilo: traduzir os grandes autores. Isso deve ter inspirado alguns a traduzir o próprio Cortázar.


REFERÊNCIAS

ARRIGUCCI JR., Davi. Revista Piauí: Misteriosa Entrega e Mudança de Si Mesmo. Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-58/cartas-julio-cortazar/misteriosa-entrega-e-mudanca-de-si-mesmo> Acesso em: 30 jun. 2012.
CORTÁZAR, Julio. Último Round. Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman.
CORTÁZAR, Julio. Volta ao Dia em 80 Mundos, A. Tomos I e II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman.
CORTÁZAR, Julio. Obra crítica. Volume 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman.
CORTÁZAR, Julio; DUNLOP, Carol; MONRÓS-STOJAKOVIĆ, Silvia. Correspondencia. Barcelona: Alpha Decay, 2009.
COUSTÉ, Alberto. El Lector de... Julio Cortázar. Barcelona: Oceano, 2001.
RIBEIRO, Gustavo Melo. Blog Morellianas: Julio Cortázar Tradutor. Disponível em:
<http://blogmorellianas.blogspot.com.br/2010/10/julio-cortazar-tradutor.html> Acesso em: 30 jun. 2012.
SMITH, Verity (ed.). Encyclopedia of Latin American literature. Londres/Chicago: Fitzroy Dearborn Publishers, 1997.

sábado, 14 de julho de 2012

Perseguidor de luxo

Se "O Perseguidor" é ou não é "o melhor conto" do Cortázar, é questão em aberto. (Até porque, além da questão do "melhor", dá para discutir se é mesmo um conto, devido ao tamanho... mas não vem ao caso.) Mas que sem dúvida foi seu texto "não-tão-longo" que causou mais impacto, discussão e homenagens, ah, isso é difícil de negar.

Agora a editora Cosac Naify, conhecida por seus livros muito bem feitos (e que, pelo menos para os meus padrões, custam muito dinheiro), lança o conto (novela, ou o que preferirem) em uma edição especial, toda dedicada ao texto.

Capa de "O Perseguidor"


Originalmente publicada pela editora Libros del Zorro Rojo em 2009, essa edição traz 22 ilustrações do desenhista argentino José Muñoz. Na edição da Cosac Naify, o livro tem 96 páginas e promete ser sensorialmente muito agradável: 16,3 cm X 24 cm e capa dura. A tradução é do também poeta e ensaísta pernambucano Sebastião Uchoa Leite, falecido em 2003. Além de Cortázar, Uchoa Leite traduziu Lewis Carroll, Octavio Paz e Stendhal.

No site da editora, não há informação sobre prazo além do tempo de entrega. Já o site da Martins Fontes Paulista diz que o produto está em pré-venda e será lançado somente em 27 de julho.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

A Plazoleta Julio Cortázar pelo olhar de seus frequentadores

Esste link me chegou hoje, por e-mail, e mostra diversos ângulos da praça argentina que leva o nome do Julio.

De folhas de árvore a bicicletas (nada de plaquinhas com "vietato introdurre biciclette", pelo jeito...). Vale uma clicada!

http://web.stagram.com/location/279900

terça-feira, 3 de julho de 2012

Negro el 10

Capa de Obras Completas, volume IV: Poesía y poética


                O problema aqui já começa com escrever o título do livro. “Negro el 10” ou “Negro el Diez”? O número 1 da Revista de la Universidad de México, por exemplo, diz, no sumário, “Negro el Diez”. Mas o texto em si está intitulado como “Negro el 10”. De maneira que não sei bem o que fazer… Acho que vou adotar “Negro el Diez” pelo simples fato de contradizer a edição dessas incompletas “Obras Completas”, que não farão valer seu nome até sabe-se lá quando…
                Tanto essa edição digital, como a edição dentro das Obras Completas, não trazem as ilustrações que deram origem ao texto cortazariano. O que eu acho uma pena, porque Cortázar sempre foi um cara multimídia, mesmo dentro de sua própria mídia específica, a escrita. (Aliás, se a Galaxia Gutenberg deixou as imagens em “Un Elogio del 3” pro achar que elas dialogavam com o texto, porque tirar as de “Negro el Diez”?)
                Poucas são as considerações que posso fazer sobre o livro, por causa da já mencionada ausência do material visual e porque é bem curto: dez conjuntos de versos, um para cada ilustração. A o primeiro desses conjuntos já tem algo que vemos muito nos textos do Julio: jogos de palavras: “(…) por no ser. Por ser no”.
                O texto apresenta os traços negativos do negro, da escuridão: a tormenta, o ódio, o ciúme. E contrapõe com uma imagem positiva: pai profundo, retorno ao começo, palavra do silêncio. E, claro, seria de se estranhar se Cortázar não fizesse a relação Negro → Noite.
                No fim, exalta a escuridão, com a seguinte bonita imagem:
    “trampolín desde donde saltan los colores, su callado sostén.
     Todo es más contra el negro; todo es menos cuando falta.”

     E encerra simples e total:
    “Tu sombra espera tras de toda luz.”