terça-feira, 21 de maio de 2013

Rayuela 50 Anos: Reler Rayuela



Já é difícil escrever sobre a leitura de “Rayuela”. Imagine, então, escrever sobre a releitura desse livro monumental. Mas, bem, já que as editoras e outros responsáveis parecem que irão deixar o cinquentenário do livro passar em branco aqui no Brasil, o autor do Morellianas vai ter de sair da preguiça, abrir um espaço na sua lista de tarefas escrita em um papel amassado, e escrever sobre o assunto.

Da primeira vez, lemos para conhecer a história. Tropeçamos a cada torção na linguagem e na técnica narrativa. Fazemos um esforço para decorar tantos nomes estrangeiros e associá-los às suas personalidades. Rascunhamos um mapa de Paris na cabeça para tentar não nos perder nas ruas e linhas. A primeira leitura, então, é para confundir-se, desesperar-se, maravilhar-se. A primeira vez é a que nos muda. O leitor (ao menos aquele que sentirá o impulso de reler “Rayuela” mais tarde) é um antes e será outro após a leitura: opera-se a mudança, de AR para DR. De “Antes de ‘Rayuela’” para “Depois de ‘Rayuela’”.

Na segunda vez, lê-se com o desejo de se situar mais na história. Com tanta informação extratextual, com tanta retomada do que já fui dito e adiantamento do que não foi dito, é compreensível que um dos principais sentimentos remanescentes na cabeça do leitor após a primeira leitura seja o atordoamento. Claro que o atordoamento também é mérito da imensa força do livro, da desconcertante história de Horacio e Maga e Rocamadour e todo o Clube da Serpente. Por tudo isso, a segunda leitura talvez seja sempre a que busca reviver o sentimento de estar maravilhado, de ver-se abalado, de ter o chão literário sobre seus pés subitamente revogado; isso sem deixar de buscar estabelecer melhor as caóticas ligações (temporais, causais e outros “ais”) que cruzam todo o livro.

Há, então, a terceira leitura, a segunda releitura. Esta prescinde de vez do entender. Porque é claro que já não buscamos entender a Maga, entender Oliveira, entender Traveler e Talita. Da mesma forma que não buscamos mais entender o que já nos entrou pela pele, o que sentimos como parte de nós; não buscamos entender o piscar dos olhos, os movimentos reflexos do instinto. O que se passa é que, sem cessar o movimento da leitura, nos detemos no instante e apreciamos a beleza da imagem total. Cortázar, compositor de figuras, pintor de quadros do texto, cristalizador de linhas em algo mais do que a soma de suas palavras.

O capítulo 8, por exemplo, talvez passe despercebido na primeira leitura, e não desperte maiores interesses na primeira releitura, pequeno e despretensioso como é, entre gigantes como o vizinho famosíssimo, capítulo 7. Mas em suas duas páginas, esse capítulo diz muito. Muito sobre o estilo de Cortázar (não estilo puramente literário... um estilo para o qual não encontro adjetivos que lhe façam justiça; seu estilo-jeito-de-ver-o-mundo, ele que adorava escrever assim, com hífen), sua maneira de nos transportar, vagarosa e progressivamente, como que para uma dimensão paralela, abstraindo e quase anulando o ambiente à volta, sem, contudo, eliminá-lo (por outra: transformando-o em uma região de tríplice fronteira entre o existir o sentir e o imaginar). Veja só:

“(...) todos os aquários ao sol e, como suspensos no ar, centenas de peixes cor-de-rosa e negros, pássaros quietos em seu ar redondo. (...) esses aquários, ao sol, verdadeiros cubos ou esferas de água que o sol misturava com o ar, e os pássaros cor-de-rosa e negros, girando e dançando docemente numa pequena porção de ar, lentos pássaros frios (...) compreendíamos cada vez menos o que é um peixe; por esse caminho de não compreender, íamos ficando cada vez mais perto deles, que não se compreendem. (...) E nós pensávamos nessa coisa incrível que havíamos lido, que um peixe sozinho no seu aquário se entristece e, então, basta colocar um espelho em frente do vidro e o peixe volta a ficar contente... (...) Este era o tempo deliqüescente, algo como um chocolate muito gostoso ou um creme de laranja da Martinica, durante o qual nos embriagávamos de metáforas e analogias”

Toda essa belíssima imagem, acredito que criteriosamente construída com palavras escolhidas, é cuidadosamente destruída pela escatologia do final do capítulo, que nos devolve de golpe à realidade da vida cotidiana, chã.

O que poderia parecer frustrante para o leitor e sem sentido para o releitor de primeira viagem é, para quem já releu algumas vezes “Rayuela” e leu também outros livros de Cortázar, uma interessante característica do franco-belga-argentino. Construir toda uma imagem bonita, edificante, etérea... para depois botar tudo abaixo. Lembram-se de “Faça como se estivesse em sua casa” (“Haga como si estuviera en casa”, no original em espanhol), texto que aparece nas últimas páginas de “Histórias de Cronópios e de Famas”? Pois é. “Rajá, perro”.

Mas a melhor releitura que se possa fazer de “Rayuela” só se pode conseguir após um período afastado do livro. É preciso, creio ter chegado a essa conclusão, reler a própria vida – reler e seguir a escrevê-la – antes de reler a obra-prima de Cortázar. Após ler outros livros, assistir a novos filmes, ver vicejar um amor, mudar um ponto de vista, topar outro desafio às vezes assustador... Depois de tudo isso, ou de outros acontecimentos que nos movam e comovam, aí, sim, é mais enriquecedor reler “Rayuela”. Porque será outro livro, sem deixar de ser o mesmo. O mesmo ímpeto de busca, achar-se cego por ter visto tanto e são de tanto haver enlouquecido; mas travando novas relações, sentindo a história do lado de lá e do lado de cá como um símbolo de sua própria história que transita e muda e se transforma, sempre em busca do “kibbutz do desejo” de cada um.