Che Cortázar, se pudesse falar contigo agora, te pediria desculpas. Mas pra isso é que serve a literatura, essa ponte entre dois quaisquer-coisas, até entre dois (ou mais) nadas, se for o caso. Então 'tá aí: me desculpa.
Me desculpa porque eu queria mesmo "reestrear" (ou alguém vai me dizer que não é uma reestreia essa volta à escrita aqui, depois de tanto tempo e contratempo), digo que queria mesmo reestrear aqui com uma notícia boa: os volumes faltantes das tuas Obras Completas sendo publicados lá na Espanha, o fim do uso das linguagens e ideias já apodrecidos, ou a abolição do academicismo castrador da livre interpretação das obras literárias. Mas não, che. Não dá. A notícia é ruim e teus próprios livros são testemunhos de que tapar os olhos não resolve nada.
Escrevo direto pra ti porque sei que várias pessoas vão poder ler e sentir que também me dirijo a elas. Não é exatamente uma forma de me esconder, mas é um jeito de a escrita sair mais fácil, sabe? Sobre essas coisas é melhor conversar com um amigo do que escrever um texto mais indireto, correndo o risco de ele sair meio empolado...
Vamos lá: uma pessoa morreu. Claro, várias pessoas morrem todos os dias (e tu mesmo já te foi hátanto tempo)... mas essa era uma pessoa que - tivesse mais de cronópio, fama ou esperança - era cortazariana. Ela apresentava as tuas obras a muita gente, Julio. Te apresentou, inclusive, para a janíssima Jana, companheira de leituras dos teus escritos.
Era uma professora, como tu mesmo foi um dia, Julio. Da parte acadêmica, que fale a internet: três pós-doutorados, pesquisadora CNPq... Como não fui aluno dela, Julio, também não posso falar da didática, dos critérios de avaliação.
Só posso falar das impressões, com o único benefício de ser alguém que não a conhecia tã ode perto a ponto de me deixar emocionar em demasia na hora de escrever isso.
Troquei alguns e-mails com a Márcia (Márcio Hoppe Navarro, que nome bacana, soa forte; esse Navarro tem algo de aguerrido, como o teu sobrenome, che), lá em 2008, porque ela ministrava a disciplina Literatura Latino-Americana III na UFRGS. Queria assistir às aulas da disciplina que fossem sobre ti. Depois de um cumprimento, a primeira coisa que ela escreveu foi "também gosto muito do Cortázar".
Foi difícil convencê-la a me deixar assistir às aulas como ouvinte. Ela parecia ter critérios bem estritos a esse respeito (vai ver a turma era hiperlotada) e eu até a julguei de antipática por isso... Relendo os e-mails dela hoje, acho que era só uma questão de critério. De qualquer maneira, ela me aceitou, só enquanto as aulas fossem sobre ti, Julio.
Mas no dia da primeira aula, tomei tanta chuva (tanta, tanta... era uma coisa digna de Oliveira e Berthe Trépat) que não fui à aula dela. Por desencontros semelhantes, também não fui às seguintes, e tive a impressão de que ela não me aceitaria numa de suas turmas de novo.
Lá se vão quatro anos, Julio. E, dias atrás, recebo um e-mail: Márcia morreu. Fiquei esse tempo todo me dizendo, esses quatro anos, entre períodos de total esquecimento sobre o assunto, que um dia ainda iria encontrá-la, conversar com ela e dizer que a chuva, que e os contratempos, e que tanta coisa... mas que agora sim, nem que clandestino, entraria na sua turma e assistiria o documentário do Tristán Bauer e contaria, curioso, os cronópios, os famas e as esperanças.
Uma pessoa assim, Julio, cheia dos diplomas, cheia de histórias a contar, cheia de gosto pelo que tu escreveu... e nem um obituário no jornal local. Nem uma nota do Instituto de Letras. Páginas e páginas de informações sobre o que ela escreveu (caramba, Julio, bastante coisa sobre ti), onde se graduou, que trabalhos desenvolveu. E nem uma palavra sobre a chama que se apagou, os amigos que vão sentir sua falta.
Não deu Julio. Acho que é assim mesmo. Os desencontros: Oliveira e a Maga, Juan e Hélène, cronópios e outros cronópios... todo mundo se desencontra nas tuas páginas, assim como na vida. Mas, também como nas tuas páginas, a gente sempre carrega um pouco do outro conosco nessa instável busca pelo Céu, em um pé só.
Gustavo, a Márcia foi a professora mais incrível que eu conheci. Sábia, generosa, humilde, ótimo astral, enfim, encantadora. Suas aulas eram magníficas. Esse mesmo gosto amargo que sentes, por não teres voltado, é semelhante ao que eu sinto, por ter deixado a vida me levar para longe da pós-graduação da UFRGS. É uma pena que ela tenha ido tão cedo, mas também considero que foi uma dádiva tè-la entre nós. Parabéns pelo texto e pelo blog!
ResponderExcluirNão sei bem quem disse isso, ou se isso ajuda, mas, não importa o dia do nascimento ou o da morte, mas o que se faz entre um e outro... o durante.
ResponderExcluirUm blogue cheio de vida como Morellianas, com Cortázar por mote, é uma boa coisa a se fazer para ocupar esse durante.
Abraço fraterno.
Obrigado, Luciana e Eurico, pelos comentários. Fico feliz de ver que meu texto os tocou de alguma maneira e que contribuiu para lembrar da Márcia (não que ela precisasse).
ResponderExcluirEspero vê-los sempre por aqui, comentando sobre Cortázar, esse cara fantástico, de que a Márcia gostava tanto.
Abraços!
Gustavo, o silêncio sobre a morte da Marcia foi algo que me incomodou bastante. Mas os amigos, muitos e que a admiravam demais, foram dar seu último adeus a nossa querida professora. Parabéns pelo teu texto e pelo teu blog. Rafael
ResponderExcluirObrigado pelos cumprimentos, Rafael.
ResponderExcluirEsse texto foi uma forma de me despedir dela... Não me sentia muito no direito de ir à cerimônia. Então este foi meu jeito de dar adeus.