Originalmente, escreveria sobre a experiência de reler “62. Modelo para Armar”. Mas o tempo foi passando, foram aparecendo coisas que me tomaram tempo, e, quando dei por mim, já tinha passado demasiado tempo para fazer um post sobre a experiência, que já não estava mais “quente” na minha memória.
Isso estava me frustrando, e talvez até tivesse escrito o texto mesmo assim, redigindo de qualquer jeito, só para cumprir um compromisso que me impus. Ainda bem que apareceu por aqui o comentário da Cláudia (aqui, ó), que me fez reler “Em Nome de Bobby”. Isso me fez pensar num texto mais abrangente, sobre a reler os textos de Cortázar em geral.
Li muita coisa do Julio, mas reli pouca coisa. Um pouco disso é porque são tantos livros que ele escreveu que se leva muito tempo até ler todos (mesmo só os “todos” que se pode achar no Brasil) para então começar a reler. Um pouco, também, porque ler Cortázar – pelo menos para quem se interessa a fundo pelo seu modo ver o mundo e de retratá-lo – é muito mais enriquecedor se vamos atrás de leituras que o influenciaram, impressionaram: por causa de seus textos, li “A História de O”, “História do Olho”, “O Pai Goriot” (“un drama sin Edipos, sin Rastignacs”, diz o capítulo 62 de “O Jogo da Amarelinha), estou lendo a versão traduzida de “The Ginger Man”, do Donleavy (“Sexta-feira Triangular”, numa tradução de título bem curiosa), e ainda tenho na minha lista, entre outros, “Paradiso”, do Lezama Lima.
E outro pouco, que não é tão pouco assim, é porque nada se compara à primeira leitura de uma obra do Julio. A primeira leitura é toda maravilhar-se e estranhar aquele universo aparentemente igual ao nosso, mas em que as leis são um pouco torcidas – e essa torção acontece sem aviso. E o que torna esse universo fantástico é justamente o estranhamento que nos preenche, mas que não afeta os personagens. Um tigre vivendo é uma casa é incômodo, mas não incrível para a família que lá habita.
As releituras são mais cerebrais, e aí a gente deixa de sentir tanto o texto, e começa a pensá-lo, a analisá-lo. Não dá pra sentir o mesmo estranhamento. Já sabemos o que acontece, e então começamos a traçar relações, a cruzar dados, a buscar influências da vida real – nunca mais vou ter aquele mal-estar lendo “Casa Tomada” depois de tanto ter lido que é uma referência à ditadura argentina.
Então, para aproveitar uma releitura de Cortázar é preciso fazer um esforço para não analisar o texto, para se livrar desse cacoete intelectual. Cortázar insistiu que seus textos, não só os em verso, eram poéticos, tinham certo ritmo. Também disse, numa entrevista (não lembro se ao Bermejo ou ao Prego), que ele achava que Horacio não se atirava ao final do romance. E quantos releitores devem haver por aí que buscam a certeza de alguma coisa nos textos que leem. Que voltam á página um para investigar, para desvendar. Apesar de serem bem compostos, os textos cortazarianos, pelo menos para mim, valem mais pelo que têm de sentimental, de instintivo, de animal. O que me fez começar esse blog é que seus textos são pulsantes, vivos.
Claro que releituras também podem ser boas, desde que a gente tenha em mente que o importante é apreciar o texto, não tanto entendê-lo. Por exemplo, “Em Nome de Bobby” agora é um conto mais marcante para mim, porque fala da infância, tema que o Cortázar trata com importância (“Final de Jogo” é um dos meus contos favoritos; acho que poucos contos retratam a infância de maneira tão interna).
Outro exemplo, esse em maior escala: “62. Modelo para Armar”. Não sou eu o único a ter saído tonto da leitura desse romance cortazariano. Da primeira leitura, tinha ficado apenas com impressões e algumas ideias vagas. Clima de escuridão, romances cruzados (um “quadrado” amoroso?), um trocadilho em francês, um ambiente à margem ou além do resto (a Cidade), sexo sáfico…
O curioso é que, mesmo relendo, não fica mais fácil explicar, comentar, resenhar “62”. Continua sendo o livro mais complexo, mais pesado, mais sombrio de Julio Cortázar. Mas é uma releitura que se presta aos meus desejos de leitor-cronópio: uma releitura menos cérebro e mais clima, sentimento, intuição.
Que possamos sempre (re)ler assim o que o Julio escreveu: ordenando o caos apenas o suficiente para nos admirarmos de como ele não precisa ser compreendido para nos encantar.
https://www.facebook.com/ojogodaamarelinha :)
ResponderExcluirOi, Dani!
ResponderExcluirObrigado por linkar para o Morellianas lá no Facebook. Não posso curtir a página porque, por incrível que pareça, não tenho Facebook. Hehe.
Beijos
P.S.: Bonitas as fotos que tem no álbum! Algumas eu nunca tinha visto!
ResponderExcluirNossa Gustavo, tenho que exclamar !!!!
ResponderExcluirVc é tão... encantado, devoto (não me xingue), sensível que acho que só vc para poder desvendar e partilhar a obra do Cortázar desta forma profunda e delicada.
Entender, significa "mergulhar", voltar para a página inicial e reiniciar ao contrário, olhar a obra de vários ângulos, assim como "A Orientação dos Gatos", com lentes noturnas, mutantes como a vida.
Reler o Cortázar é achar "coelhos dentro do armário", quando vc acha que todos saíram, aparece outro e mais outro...
Acho que li "A Ilha ao Meio-Dia" umas dez vezes. E a cada leitura, uma nova luz surgia daquele livro que me fascinou. "Sinto" o olhar do cavalo no vidro do conto "Verão", as patas trotando do lado de fora e virando a vida do casal ao contrário... Sem falar da "Srta. Cora"... Quantos "meninos" associamos aquele pequeno que entende a vida num segundo.
Bem, Sr. Gatotixa, é muito bom passear por aqui. Vc acende luzes.
Bjs,
Com carinho,
Cláudia
Grato pelas exclamações, Cláudia! São um bálsamo neste dia que teve tanto gosto de sola de sapato. rs
ExcluirNão vou xingar. Achei lindo o "encantado", é um adjetivo que adoro. E também gostei do "devoto": é sinônimo de dedicado, além de ser o sobrenome de um autor ao qual o Julio já demonstrou carinho.
Puxa, na verdade eu gostei de tudo o que você escreveu, Cláudia. Levaria muito tempo comentar tintim por tintim desse belo comentário. Belo como todos os seus.
Também tenho essas sensações - esses sentimentos, por que não? - quando leio essas histórias. Me identifiquei principalmente com o que você disse sobre "Verão". É um conto do qual, quando leio, me sinto dentro, experimento o que os personagens experimentaram.
Para coroar, você sempre encerra com uma frase que diz tudo, embora para cada um possa dizer algo. "Você acende luzes" é maravilhoso!
Seria pedir de mais que você escrevesse um e-mail para o e-mail do Blog? Queria mandar um material para, se todas concordarem, participar das tertúlias (gosto tanto do som dessa palavra: parece mistura de tortura com tulipa!) lagartixescas!
Beijos com carinho,
Gus
AH!!!!!
ExcluirQue gostoso!
Vou ver se decifro o enigma do email.
Vc é muito querido.
Todas nós partilhamos seu espaço com respeito e carinho.
Bj,
Cláudia
Ah, que isso, Cláudia. Você que é muito querida! Todas vocês são, mas você é mais, porque é quem mais me escreve - obrigado por todos os comentários que faz aqui, sempre tão inteligentes e sensíveis.
ResponderExcluirEu não quero ser intrometido, então se eu não puder sugerir nada para o grupo - porque meu rabo de lagartixa ainda não cresceu totalmente... haha - tudo bem, tá?
Bjo!
Gatixo:
ExcluirHoje, em nome das Lagartixas, consagro-te Lagarto.
Consegui desvendar o mistério do e-mail (claro que para nós, lagartixas, foi também uma iniciação).
A senha para "A Auto Estrada do Sul:
clubedaslagartixas@gmail.com
Bj,
Bem vindo à ciranda.
Lagartixas
Obrigado, Lagartixas! :)
ResponderExcluirLogo vou lançar uma "garrafa ao mar" (já leram texto conto do Julio? Sensacional) por esse e-mail.
Fico contente em ser considerado um Lagarto - ainda mais com maiúscula! Agora faz sentido o meu gosto por lagartear (uma gíria que o dicionário diz que é brasileira, mas acho que é quase só gaúcha: aquecer-se preguiçosamente ao sol)!
Beijos do Lagarto/Cronópio/Piantado!