Já é difícil escrever sobre a leitura de “Rayuela”. Imagine, então, escrever sobre a releitura desse livro monumental. Mas,
bem, já que as editoras e outros responsáveis parecem que irão deixar o
cinquentenário do livro passar em branco aqui no Brasil, o autor do Morellianas
vai ter de sair da preguiça, abrir um espaço na sua lista de tarefas escrita em
um papel amassado, e escrever sobre o assunto.
Da primeira vez, lemos para conhecer a história.
Tropeçamos a cada torção na linguagem e na técnica narrativa. Fazemos um
esforço para decorar tantos nomes estrangeiros e associá-los às suas
personalidades. Rascunhamos um mapa de Paris na cabeça para tentar não nos
perder nas ruas e linhas. A primeira leitura, então, é para confundir-se,
desesperar-se, maravilhar-se. A primeira vez é a que nos muda. O leitor (ao
menos aquele que sentirá o impulso de reler “Rayuela” mais tarde) é um antes e
será outro após a leitura: opera-se a mudança, de AR para DR. De “Antes de ‘Rayuela’”
para “Depois de ‘Rayuela’”.
Na segunda vez, lê-se com o desejo de se situar
mais na história. Com tanta informação extratextual, com tanta retomada do que
já fui dito e adiantamento do que não foi dito, é compreensível que um dos
principais sentimentos remanescentes na cabeça do leitor após a primeira
leitura seja o atordoamento. Claro que o atordoamento também é mérito da imensa
força do livro, da desconcertante história de Horacio e Maga e Rocamadour e
todo o Clube da Serpente. Por tudo isso, a segunda leitura talvez seja sempre a
que busca reviver o sentimento de estar maravilhado, de ver-se abalado, de ter
o chão literário sobre seus pés subitamente revogado; isso sem deixar de buscar
estabelecer melhor as caóticas ligações (temporais, causais e outros “ais”) que
cruzam todo o livro.
Há, então, a terceira leitura, a segunda releitura.
Esta prescinde de vez do entender. Porque é claro que já não buscamos entender a Maga, entender Oliveira, entender
Traveler e Talita. Da mesma forma que não buscamos mais entender o que já nos
entrou pela pele, o que sentimos como parte de nós; não buscamos entender o
piscar dos olhos, os movimentos reflexos do instinto. O que se passa é que, sem
cessar o movimento da leitura, nos detemos no instante e apreciamos a beleza da
imagem total. Cortázar, compositor de figuras, pintor de quadros do texto,
cristalizador de linhas em algo mais do que a soma de suas palavras.
O capítulo 8, por exemplo, talvez passe
despercebido na primeira leitura, e não desperte maiores interesses na primeira
releitura, pequeno e despretensioso como é, entre gigantes como o vizinho
famosíssimo, capítulo 7. Mas em suas duas páginas, esse capítulo diz muito.
Muito sobre o estilo de Cortázar (não estilo puramente literário... um estilo para
o qual não encontro adjetivos que lhe façam justiça; seu estilo-jeito-de-ver-o-mundo,
ele que adorava escrever assim, com hífen), sua maneira de nos transportar,
vagarosa e progressivamente, como que para uma dimensão paralela, abstraindo e quase
anulando o ambiente à volta, sem, contudo, eliminá-lo (por outra:
transformando-o em uma região de tríplice fronteira entre o existir o sentir e
o imaginar). Veja só:
“(...) todos os aquários ao sol e, como suspensos
no ar, centenas de peixes cor-de-rosa e negros, pássaros quietos em seu ar
redondo. (...) esses aquários, ao sol, verdadeiros cubos ou esferas de água que
o sol misturava com o ar, e os pássaros cor-de-rosa e negros, girando e
dançando docemente numa pequena porção de ar, lentos pássaros frios (...)
compreendíamos cada vez menos o que é um peixe; por esse caminho de não
compreender, íamos ficando cada vez mais perto deles, que não se compreendem.
(...) E nós pensávamos nessa coisa incrível que havíamos lido, que um peixe
sozinho no seu aquário se entristece e, então, basta colocar um espelho em
frente do vidro e o peixe volta a ficar contente... (...) Este era o tempo
deliqüescente, algo como um chocolate muito gostoso ou um creme de laranja da
Martinica, durante o qual nos embriagávamos de metáforas e analogias”
Toda essa belíssima imagem, acredito que
criteriosamente construída com palavras escolhidas, é cuidadosamente destruída
pela escatologia do final do capítulo, que nos devolve de golpe à realidade da
vida cotidiana, chã.
O que poderia parecer frustrante para o leitor e sem
sentido para o releitor de primeira viagem é, para quem já releu algumas vezes
“Rayuela” e leu também outros livros de Cortázar, uma interessante
característica do franco-belga-argentino. Construir toda uma imagem bonita,
edificante, etérea... para depois botar tudo abaixo. Lembram-se de “Faça como
se estivesse em sua casa” (“Haga como si estuviera en casa”, no original em
espanhol), texto que aparece nas últimas páginas de “Histórias de Cronópios e
de Famas”? Pois é. “Rajá, perro”.
Mas a melhor releitura que se possa fazer de “Rayuela”
só se pode conseguir após um período afastado do livro. É preciso, creio ter
chegado a essa conclusão, reler a própria vida – reler e seguir a escrevê-la –
antes de reler a obra-prima de Cortázar. Após ler outros livros, assistir a
novos filmes, ver vicejar um amor, mudar um ponto de vista, topar outro desafio
às vezes assustador... Depois de tudo isso, ou de outros acontecimentos que nos
movam e comovam, aí, sim, é mais enriquecedor reler “Rayuela”. Porque será
outro livro, sem deixar de ser o mesmo. O mesmo ímpeto de busca, achar-se cego
por ter visto tanto e são de tanto haver enlouquecido; mas travando novas
relações, sentindo a história do lado de lá e do lado de cá como um símbolo de
sua própria história que transita e muda e se transforma, sempre em busca do “kibbutz
do desejo” de cada um.