segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Humanario

Capa da primeira edição


Julio Cortázar era um louco. Imaginar criaturas como os cronópios, ou fazer em semanas uma viagem que demoraria horas são claros indícios disso. “Casa Tomada”, “Anel de Moebius”, tantos contos que parecem ter saído de uma mente insana... Por isso, a este “Humanario” cai tão bem o texto de Cortázar que acompanha as pungentes fotos de Sara Facio e Alicia D’Amico.

“Humanario” foi lançado em 1976 pela La Azotea Editorial e, sem reimpressões desde então, segue sendo excruciantemente difícil encontrar uma de suas 1.000 cópias lançadas originalmente. Não dispondo de meio para ir até Buenos Aires, consultar o exemplar em poder da editora – a convite, via e-mail, vindo da própria Sara Facio –, contei com a inestimável ajuda de Óscar Martínez Azumendi, responsável pelo surpreendente site PsiquiFotos – Imágenes de La Psiquiatria (http://www.psiquifotos.com). A análise deste livro jamais teria sido possível sem a dedicada e paciente ajuda de Óscar.

A obra é composta de fotografias tiradas por Sara e Alicia em clínicas para deficientes mentais (ou talvez uma só clínica, o livro não é claro sobre isso). Assim como “Negro el Diez”, é possível achar o texto em coletâneas, mas, bem como “Último Round” ou “Prosa do Observatório”, as fotos ampliam a força e a pungência do texto. São fotos em que os pacientes aparecem com diferentes auras: às vezes absortos, às vezes distraídos, às vezes como se fossem imagens santificadas; curiosos, perplexos, quase sempre em abandono. O menino da capa nos fita como se olhasse através, e para além, de nós. Francamente impossível não sentir um tremor e um arrepio ao pensar o que nos terão querido dizer.

A verdade é que chega a ser insuportável fitar as fotos durante muito tempo. Há um estremecimento pelo abandono e uma espécie, talvez, de santidade: os internos nos dragam para dentro de sua realidade assombrada. A contracapa do livro chama a obra de “viagem”. Parece mais um vagaroso afundamento em areia movediça.

O livro é bom desde seu princípio, a introdução do psiquiatra Fernando Pagés Larraya. De tão boa, pode-se chegar a imaginar, se lida inadvertidamente, que seja ela o texto escrito por Cortázar. Larraya, falecido em 2007, foi culto, engraçado e muito perspicaz em seu texto, não ficando muito aquém da qualidade do escrito cortazariano.

É claro que Julio não era, pelos parâmetros clínicos, um louco. Mas sabia entrar em um estado de loucura consignada: embaralhar a visão da suposta lucidez para, ao menos, entrever o que há do outro lado, o lado da sandice (seria “Cristal com uma Rosa Dentro” um símbolo disto?). E quais loucos não são tão loucos, e quais sãos estão tão insanos como os ditos loucos. Como escreve Julio entre as páginas 12 e 13:

“Si nuestra intuición fuera infalible, quizá los rostros que se ven en este libro permitirían descubrir cuáles de esos seres se mueven en la zona axial, de contacto, y cuáles están fuera de todo alcance; de la misma manera que si nuestra intuición fuera infalible, quizá las fotografías de jefes de estado, mariscales famosos, filósofos, banqueros, políticos e industriales, permitirían descubrir cuáles de esos seres se mueven en la zona axial, de contacto, y cuáles están fuera de todo alcance”.

Cortázar argumenta que não é mais do que por convenção social que certos tipos, profundamente perturbados, sejam tidos como baluartes da lucidez:

"La única suerte que tienen ciertos coleccionistas maniáticos, ciertos multimillonarios que pagan guerras y genocidios para multiplicar una fortuna que ya no les sirve para nada a fuerza de inmensa, ciertos Pinochets y ciertos Francos, es que no se babean; este pequeño detalle húmedo es la sola razón por la cual no han sido encerrados y además fotografiados por Sara y Alicia".

Nesse trecho, JC escancara que, às vezes, para receber o rótulo de louco, basta apresentar comportamentos pouco socialmente aceitos (“sintomas espectaculares o deprimentes”) e denuncia que, a bem da verdade, certo tipo de sanidade, sendo o oposto polar da loucura, nada mais é que um paralelo seu. Afinal, haverá, mesmo, muita diferença, entre a dedicação de um dito louco em cuidar de seu cachorro imaginário e a dedicação ao estudo que faz um erudito se alhear de tudo que não seja o objeto de sua pesquisa? Para Cortázar, “el loco es un hombre que está solo, que no tiene relación com nuestro tablero de dirección, así como nosotros no la tenemos com el suyo” (p.14). O que pode ser tanto o caso do “louco clássico” como do erudito alienado. E o que me faz querer reler, precisamente com este pensamento , os capítulos de “Rayuela” que se passam no hospício. Afinal, obcecados como são por certas falências suas, não seria ironicamente justo que tipos como Horacio e Traveler acabem por parar em um manicômio?

Na página seguinte de “Humanario”, isso fica ainda mais claro quando Julio pergunta, nos impondo a reflexão, "qué es ese todo que el loco ha perdido? Exactamente lo mismo —pero sin la inocencia que delata al insano— que ha perdido el profesor ilustre concentrado". Em outros termos, se é que posso me atrever a parafrasear algo dito por Cortázar, o escapismo é uma forma de loucura em que se incorre com certa frequência no extremo da lucidez.

Claramente, o ponto de vista de Julio sobre a dicotomia loucura/lucidez tem muito a ver com sua visão sobre “ir além”, formar uma nova realidade, mais construída e menos aceita. Como se lê neste trecho, da página 15:

"El poeta, que no acepta el lenguaje en su intención puramente racional, ve muchas cosas convergentes y colindantes en términos como razón y locura, e incluso prefiere eliminarlos para aprehender directamente eso que es um loco o un cuerdo; como está resueltamente instalado en la zona axial, su visión permeable le muestra todo proyecto de hombre por venir como una integración fecunda y saltarina de componentes que vienen de los primeros grados de la razón y de la sinrazón, allí donde hay um territorio común, donde la lógica aristotélica no es soberana absoluta sino solamente constitucional”.

A “esponjidade” do poeta, o “novo homem”, a alteridade... tudo muito Cortázar, de fato.

Outro trecho muito cortazariano do texto é o que relaciona a loucura aos sonhos, e que, inescapavelmente, faz lembrar de “62. Modelo para Armar”. Esse trecho encontra-se entre as páginas 16 e 17 e diz:

“(...) acaso la locura nacía de extrapolar un sueño de transgresión, um sueño de que ese hombre o ese niño no despertarían ya nunca, um sueño que había invadido y desplazado la vigilia, como lo hace el delirio, como lo hace la esperanza, como lo hace el amor. Porque desplazar las categorías ordinarias no tiene nada de extraordinario, y en pequeñas dosis nos ocurre a cada momento, desde el plano del lenguaje en que metáforas y figuras alcanzan sus fines contra viento y marea lógicos, hasta el territorio de los sentimientos en que se operan las irrazonables metamorfosis de los seres amados o la sacralización erótica de zonas repugnantes en toda otra circunstancia”.

Dicionário. Bestiário. Humanário. Coleções de itens muitas vezes incompreensíveis, talvez fantasiosas, mas que nos trazem encanto, questionamento e nos mostram que a vida pode ter muito mais dimensão e profundidade se olharmos além.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Alto el Perú



Capa da segunda edição

Quero ler alguma coisa. Alguma coisa do Cortázar. É o centenário, tchê, e sinto que preciso ler mais um algum livro dele, ainda que sejam poucos os que me restam para ler. Olho “Alto El Perú”. Hum, parece bom para uma leitura de fim de semana. É alto e lago, mas fino (umas 70 páginas). E tem fotos. Um livro de viagem, isso. Ou talvez uma obra inclassificável como “Prosa do Observatório”... Deve ser, concluo, uma boa leitura para o fim de semana: leve e breve.

Estou errado. Muito errado. “Alto El Perú” é pesado como um soco no estômago. O que de mais bonito, mais leve há nele é a foto tirada por Carol Dunlop numa das primeiras páginas: sorridente, uma bela Manja Offerhaus olha como que para o céu, esperançosa; enigmático, um absorto Julio parece olhar algo em outra dimensão.

Quando digo que é um livro pesado, não digo que seja difícil compreendê-lo. Não, a parte mais logicamente complexa está no início: Julio escreve sobre a literatura e a fotografia; me tomou algum tempo – e umas releituras – compreender a metáfora da linguagem como aranhas para moscas e do poeta como alguém que, sim, ainda tem de buscar as moscas, mas tentando, ao mesmo tempo, que as suas aranhas atinjam a algo mais, algo além/uma nova extensão significativa das moscas. (Não se preocupem: é muito melhor no texto do que nesta horrenda resenha.)

Não pesado, mas que pode confundir alguns, é o sentimento de, através de uma “passagem”, chegar a outro lugar. Da realidade retratada nas fotos de Manja passa-se, d súbito, à realidade imediata, dos amigos que já esperam não conseguir chegar à sessão de cinema. Algo entre “As Babas do Diabo” e “O Outro Céu”.

Surpreendeu-me, embora talvez não devesse, ver como o livro assume, gradativamente, um tom... não diria político, o que faria pensar em “Nicarágua tão Violentamente Doce”, que é um livro bastante diferente. Mas um tom social, humanitário. Se o leitor já passou por momentos de se questionar, duramente, o que lhe dá o direito de ter uma casa, acesso a um computador e uma série de confortos, enquanto outros mal se alimentam, mal se vestem, mal vivem, pode pelo menos ter a consciência de que Cortázar também se angustiava com questões assim, com esse acaso que cria essas condições que nos fazem sentir culpados por simplesmente ter o mínimo necessário para viver dignamente.

(Sim, porque, com suas diferenças, ainda assim há muitas semelhanças entre os miseráveis do mundo. A certa altura do livro de Julio e Manja me surpreendi pensando, por um breve instante, que não eram peruanos, distantes muitos quilômetros e muitos anos de mim – eram, então, os descendentes de índios que se vê aqui, em lugares como a Redenção: empobrecidos, ignorados, mendicantes.)

Ainda que não tenham combinado assim, como contam no início do livro, é assombroso como o texto de Julio casa bem com as fotos de Manja: não foram feitos, necessariamente, para se complementarem, mas há, no encontro das duas artes, expansão, sublimação, até.

Como o caso da foto abaixo e seu respectivo trecho:




“(...)figura de pesadilla con la mirada fija en una meta incognoscible que puede ser la nada o el horizonte de los cerros que es lo mismo, el hambre sin forma llenando el aire y un tiempo que se prolongarán hasta quién sabe, la esquina, el hospital, grande es el mundo de los pobres, muchas las piedras donde sentarse gratis, los catres donde morir aunque morir no se dirá casi nunca, se dirá cerrar los ojos, se dirá la abuela cerró los ojos, se dirá la hermanita se fue, se nos fue la hermanita, le dio un pasmo, el destino.”

Não muito menos que assustador.

(As notas que deram origem ao texto a partir daqui foram tomadas em um café, em um guardanapo de papel. Anedota praticamente insignificante se não o tivesse feito como singela homenagem de um piantado ao seu autor favorito, que não só frequentava como, por vezes, ambientava suas histórias em cafés, esses lugares tão significaivos mas cada vez mais tão raros...)

Falei, já, da mistura de “As Babas do Diabo” com “O Outro Céu” que há neste livro. Outro trecho impressionante de “Alto el Perú” é este, em que Julio reflete a respeito do olhar de uma menina em uma das fotos de Offerhaus:

“La niña no mira los nichos, me está mirando a mí desde un puente vertiginoso que la arranca a esa obligación de pasado pasivo en que se mueven sus padres, la lanza contra el objetivo cromado que la volverá imagen activa y la hará viajar de Puno a esta casa donde ya no hay objetivo cromado ni viaje, donde ella y yo estamos frente a frente y ella me mira como miró hacia lo que sería un futuro inconcebible en el momento en que el puro presente de la cámara la inmovilizaba. Yo soy su futuro y Ella mi pasado, algo que sucedió hace dos o tres años; toda foto es la intercesora de esas operaciones del tiempo mental que los relojes y los calendarios desmienten; ¿pero dónde están los calendarios y los relojes si no transcurren en lo mental? Cuando Carlos Gardel canta que veinte años no es nada, está más cerca de Heráclito y de Heidegger que el imbécil que se sonríe ante esta frase. La fotografía, Manja, no congela el tiempo como suele decirse; muy al contrario, lo libera de su versión primaria, nos lanza a esa indiecita y a mí a un vértigo de espejos y de lásers, a una no mensurable cetrería a espaldas del presente donde una pareja también de espaldas busca con el recuerdo a Manuela Rodríguez Zum de Chavez.”

Não sei muito a respeito de Manja Offerhaus, mas me parece que Julio encontrou nela uma boa companheira de autoria, até mesmo no que diz respeito ao otimismo: “No termino de decirlo y ya está ella toda uñas afuera imprecándome: no habrá mendigos en el mañana, en el mañana estas imágenes serán las figuras rupestres que otros niños verán en los museos, objetos de horror y asombro.”

Mas o que nem o otimismo de Manja Offerhaus e Julio Cortázar conseguem abrandar é o violento desespero calado do que vemos e lemos em seguida:
 


“Mira cómo esa peruanita tan quieta en una esquina con su bolsa de pan (que ya es mucho, si es de ella) intenta una sonrisa tras de la cual cabrillea una esperanza de monedas y también de caricias porque tú eres rubia y buena, Manja, los niños se dejan fotografiar por ti como si comprendieran que tu cámara vale más que los discursos de los ministros; solamente que, fijate bien, ahí a los pies, en el cordón de la acera, ¿ves las dos cruces, Manja, ves las dos cruces?”

Ainda que a imagem de um menino quase sorrindo, coadjuvante em uma foto, anime a esperança de Julio, a imagem da neve que cai ao fim do livro é triste, e, pelo menos para mim, desesperançada.

A pergunta maior que me fica é: como nós, povos da América Latina, podemos passar por tantas misérias semelhantes e, ainda assim, nos desconhecermos tanto e, muitas vezes, não demonstrarmos sequer a vontade de nos conhecermos?

O que fazemos é muito pouco. Como o inútil ato de levantar da cama às duas da manhã para escrever este texto.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Cortázar em quadro... e em animação!

Takes de canções de Jazz, fotografias assustadoramente reveladoras, interpretações de pinturas famosas, catálogo de esculturas de Reinhoud... A literatura de Cortázar sempre saiu da literatura e conquistou explorou as outras artes. É justo que as as outras artes retribuam e paguem tributo à obra do grande cronópio.

Claro que já há exemplos disso, como os filmes listados neste post e as diversas obras que tomaram inspiração em algum elemento cortazariano listadas neste outro post. Mas duas outras mídias entraram nessa lista, como fiquei sabendo entre ontem e hoje.

Edegar Rissi, artista plástico que trabalha com MDF, nos mandou o seguinte link, para uma obra sua baseada em um dos meus livros favoritos do Cortázar: Os Autonautas da Cosmopista. Já que nosso amigo leitor autorizou, postarei uma imagem da obra aqui.


"Julio", de Edegar Rissi. Arte em MDF de 9 mm

 Alternativamente, podem ver a obra no site do próprio Edegar, que tem muitas outras obras bacanas:
http://pequenosrecortes.blogspot.com.br/2014/03/julio.html

A outra mídia é a animação. Julio, que sempre anda às voltas com outros Julios (como o pintor Julio Silva, de "Silvalandia"), teve, na década de 70, um encontro com outro Julio, o Ludeña; encontro do qual, nos conta a página da Revista Arcadia, nasceram as primeiras possibilidades para esta animação. A animação de Ludeña deve estrear nos cinemas argentinos e o trailer já pode ser visto na internet (veja ao final do post). O trailer é intrigante porque se nota que há diversos artistas envolvidos, mas são poucas as imagens que nos deixam adivinhar quais dos textos de "Histórias de Cronopios y de Famas" aparecerão no longa.

Assista, abaixo, ao promissor trailer:

domingo, 30 de março de 2014

Tradução do comentário de Chris Kearin a respeito de Viaje Alrededor de una Mesa

Em meu post sobre "Viaje Alrededor de una Mesa", nosso amigo Chris Kearin, do excelente blog Dreamers Rise, publicou um comentário que expande e talvez até supere meu texto. Tão excelente me parece que pedi ao Chris para que deixasse eu traduzir seu comentário e publicar a versão em português em um novo post. Nosso amigo norte-americano concordou e aqui está, para aqueles que não se viram tão bem no espanhol:

Pergunto-me se essa mesa redonda à qual se alude no título deste livro não será igual à que Cortázar se refere em "Lucas, suas discussões partidárias":

"Quase sempre começa igual, notável acordo político em montões de coisas e grande confiança recíproca, porém em algum momento os militantes não literários se dirigirão amavelmente aos militantes literários e lhes colocarão, por arquienésima vez, a questão da mensagem, do conteúdo inteligível para o maior número de leitores (ou ouvintes ou espectadores, porém sobretudo de leitores, oh sim)."

Há uma imagem da capa de "Viaje alrededor de una mesa" em "Cortázar de la A a la Z: Un Álbum Biográfico" (que acaba de sair), acompanhada de um breve trecho de uma carta a Vargas Llosa que faz referência a este mesmo encontro.

Creio que o argumento que Cortázar apresenta aqui é bastante similar ao que disse (em Cuba, originalmente) em "Del Cuento Breve y Sus Alrededores":

"Por minha parte, creio que o escritor revolucionário é aquele em quem se fundem indissoluvelmente a consciência de seu livre compromisso individual e coletivo, com essa outra so¬berana liberdade cultural que confere o pleno domínio de seu oficio. Se esse escritor, responsável e lúcido, decide escrever literatura fantástica, ou psicológica, ou volta ao passado, seu ato é um ato de liberdade dentro da revolução, e por isso é também um ato revolucionário mesmo que seus contos não se ocupem das formas individuais ou coletivas que adota a revolução. Contrariamente ao estreito critério de muitos que confundem literatura com pedagogia, literatura com ensino, literatura com doutrinação ideológica, um escritor revolucionário tem todo o direito de se dirigir a um leitor muito mais complexo, muito mais exigente em matéria espiritual do que imaginam os escritores e os críticos improvisados pelas circunstâncias e convencidos de que seu mundo pessoal é o único mundo existente, de que as preocupações do momento são as únicas preocupações válidas."

Saudações,

Chris