Capa da primeira edição |
Julio Cortázar era um louco. Imaginar criaturas como os
cronópios, ou fazer em semanas uma viagem que demoraria horas são claros
indícios disso. “Casa Tomada”, “Anel de Moebius”, tantos contos que parecem ter
saído de uma mente insana... Por isso, a este “Humanario” cai tão bem o texto
de Cortázar que acompanha as pungentes fotos de Sara Facio e Alicia D’Amico.
“Humanario” foi lançado em 1976 pela La Azotea Editorial e,
sem reimpressões desde então, segue sendo excruciantemente difícil encontrar
uma de suas 1.000 cópias lançadas originalmente. Não dispondo de meio para ir
até Buenos Aires, consultar o exemplar em poder da editora – a convite, via
e-mail, vindo da própria Sara Facio –, contei com a inestimável ajuda de Óscar
Martínez Azumendi, responsável pelo surpreendente site PsiquiFotos – Imágenes
de La Psiquiatria (http://www.psiquifotos.com). A análise deste livro jamais
teria sido possível sem a dedicada e paciente ajuda de Óscar.
A obra é composta de fotografias tiradas por Sara e Alicia
em clínicas para deficientes mentais (ou talvez uma só clínica, o livro não é
claro sobre isso). Assim como “Negro el Diez”, é possível achar o texto em
coletâneas, mas, bem como “Último Round” ou “Prosa do Observatório”, as fotos
ampliam a força e a pungência do texto. São fotos em que os pacientes aparecem
com diferentes auras: às vezes absortos, às vezes distraídos, às vezes como se
fossem imagens santificadas; curiosos, perplexos, quase sempre em abandono. O
menino da capa nos fita como se olhasse através, e para além, de nós.
Francamente impossível não sentir um tremor e um arrepio ao pensar o que nos
terão querido dizer.
A verdade é que chega a ser insuportável fitar as fotos
durante muito tempo. Há um estremecimento pelo abandono e uma espécie, talvez,
de santidade: os internos nos dragam para dentro de sua realidade assombrada. A
contracapa do livro chama a obra de “viagem”. Parece mais um vagaroso
afundamento em areia movediça.
O livro é bom desde seu princípio, a introdução do
psiquiatra Fernando Pagés Larraya. De tão boa, pode-se chegar a imaginar, se lida
inadvertidamente, que seja ela o texto escrito por Cortázar. Larraya, falecido
em 2007, foi culto, engraçado e muito perspicaz em seu texto, não ficando muito
aquém da qualidade do escrito cortazariano.
É claro que Julio não era, pelos parâmetros clínicos, um
louco. Mas sabia entrar em um estado de loucura consignada: embaralhar a visão
da suposta lucidez para, ao menos, entrever o que há do outro lado, o lado da
sandice (seria “Cristal com uma Rosa Dentro” um símbolo disto?). E quais loucos
não são tão loucos, e quais sãos estão tão insanos como os ditos loucos. Como
escreve Julio entre as páginas 12 e 13:
“Si nuestra intuición fuera infalible, quizá los rostros que
se ven en este libro permitirían descubrir cuáles de esos seres se mueven en la
zona axial, de contacto, y cuáles están fuera de todo alcance; de la misma
manera que si nuestra intuición fuera infalible, quizá las fotografías de jefes
de estado, mariscales famosos, filósofos, banqueros, políticos e industriales,
permitirían descubrir cuáles de esos seres se mueven en la zona axial, de
contacto, y cuáles están fuera de todo alcance”.
Cortázar argumenta que não é mais do que por convenção
social que certos tipos, profundamente perturbados, sejam tidos como baluartes da
lucidez:
"La única suerte que tienen ciertos coleccionistas
maniáticos, ciertos multimillonarios que pagan guerras y genocidios para
multiplicar una fortuna que ya no les sirve para nada a fuerza de inmensa,
ciertos Pinochets y ciertos Francos, es que no se babean; este pequeño detalle
húmedo es la sola razón por la cual no han sido encerrados y además fotografiados
por Sara y Alicia".
Nesse trecho, JC escancara que, às vezes, para receber o
rótulo de louco, basta apresentar comportamentos pouco socialmente aceitos (“sintomas
espectaculares o deprimentes”) e denuncia que, a bem da verdade, certo tipo de
sanidade, sendo o oposto polar da loucura, nada mais é que um paralelo seu.
Afinal, haverá, mesmo, muita diferença, entre a dedicação de um dito louco em
cuidar de seu cachorro imaginário e a dedicação ao estudo que faz um erudito se
alhear de tudo que não seja o objeto de sua pesquisa? Para Cortázar, “el loco
es un hombre que está solo, que no tiene relación com nuestro tablero de
dirección, así como nosotros no la tenemos com el suyo” (p.14). O que pode ser
tanto o caso do “louco clássico” como do erudito alienado. E o que me faz
querer reler, precisamente com este pensamento , os capítulos de “Rayuela” que
se passam no hospício. Afinal, obcecados como são por certas falências suas,
não seria ironicamente justo que tipos como Horacio e Traveler acabem por parar
em um manicômio?
Na página seguinte de “Humanario”, isso fica ainda mais
claro quando Julio pergunta, nos impondo a reflexão, "qué es ese todo que
el loco ha perdido? Exactamente lo mismo —pero sin la inocencia que delata al
insano— que ha perdido el profesor ilustre concentrado". Em outros termos,
se é que posso me atrever a parafrasear algo dito por Cortázar, o escapismo é
uma forma de loucura em que se incorre com certa frequência no extremo da
lucidez.
Claramente, o ponto de vista de Julio sobre a dicotomia
loucura/lucidez tem muito a ver com sua visão sobre “ir além”, formar uma nova
realidade, mais construída e menos aceita. Como se lê neste trecho, da página
15:
"El poeta, que no acepta el lenguaje en su intención
puramente racional, ve muchas cosas convergentes y colindantes en términos como
razón y locura, e incluso prefiere eliminarlos para aprehender directamente eso
que es um loco o un cuerdo; como está resueltamente instalado en la zona axial,
su visión permeable le muestra todo proyecto de hombre por venir como una integración
fecunda y saltarina de componentes que vienen de los primeros grados de la
razón y de la sinrazón, allí donde hay um territorio común, donde la lógica
aristotélica no es soberana absoluta sino solamente constitucional”.
A “esponjidade” do poeta, o “novo homem”, a alteridade...
tudo muito Cortázar, de fato.
Outro trecho muito cortazariano do texto é o que relaciona a
loucura aos sonhos, e que, inescapavelmente, faz lembrar de “62. Modelo para
Armar”. Esse trecho encontra-se entre as páginas 16 e 17 e diz:
“(...) acaso la locura nacía de extrapolar un sueño de
transgresión, um sueño de que ese hombre o ese niño no despertarían ya nunca,
um sueño que había invadido y desplazado la vigilia, como lo hace el delirio,
como lo hace la esperanza, como lo hace el amor. Porque
desplazar las categorías ordinarias no tiene nada de extraordinario, y en
pequeñas dosis nos ocurre a cada momento, desde el plano del lenguaje en
que metáforas y figuras alcanzan sus fines contra viento y marea lógicos,
hasta el territorio de los sentimientos en que se operan las irrazonables
metamorfosis de los seres amados o la sacralización erótica de zonas
repugnantes en toda otra circunstancia”.
Dicionário. Bestiário. Humanário. Coleções de itens muitas
vezes incompreensíveis, talvez fantasiosas, mas que nos trazem encanto,
questionamento e nos mostram que a vida pode ter muito mais dimensão e
profundidade se olharmos além.