Capa da segunda edição |
Quero ler
alguma coisa. Alguma coisa do Cortázar. É o centenário, tchê, e sinto que preciso
ler mais um algum livro dele, ainda que sejam poucos os que me restam para ler.
Olho “Alto El Perú”. Hum, parece bom para uma leitura de fim de semana. É alto
e lago, mas fino (umas 70 páginas). E tem fotos. Um livro de viagem, isso. Ou
talvez uma obra inclassificável como “Prosa do Observatório”... Deve ser,
concluo, uma boa leitura para o fim de semana: leve e breve.
Estou
errado. Muito errado. “Alto El Perú” é pesado como um soco no estômago. O que
de mais bonito, mais leve há nele é a foto tirada por Carol Dunlop numa das
primeiras páginas: sorridente, uma bela Manja Offerhaus olha como que para o
céu, esperançosa; enigmático, um absorto Julio parece olhar algo em outra
dimensão.
Quando digo
que é um livro pesado, não digo que seja difícil compreendê-lo. Não, a parte
mais logicamente complexa está no início: Julio escreve sobre a literatura e a
fotografia; me tomou algum tempo – e umas releituras – compreender a metáfora da
linguagem como aranhas para moscas e do poeta como alguém que, sim, ainda tem
de buscar as moscas, mas tentando, ao mesmo tempo, que as suas aranhas atinjam
a algo mais, algo além/uma nova extensão significativa das moscas. (Não se
preocupem: é muito melhor no texto do que nesta horrenda resenha.)
Não pesado,
mas que pode confundir alguns, é o sentimento de, através de uma “passagem”,
chegar a outro lugar. Da realidade retratada nas fotos de Manja passa-se, d súbito,
à realidade imediata, dos amigos que já esperam não conseguir chegar à sessão
de cinema. Algo entre “As Babas do Diabo” e “O Outro Céu”.
Surpreendeu-me,
embora talvez não devesse, ver como o livro assume, gradativamente, um tom...
não diria político, o que faria pensar em “Nicarágua tão Violentamente Doce”,
que é um livro bastante diferente. Mas um tom social, humanitário. Se o leitor
já passou por momentos de se questionar, duramente, o que lhe dá o direito de
ter uma casa, acesso a um computador e uma série de confortos, enquanto outros
mal se alimentam, mal se vestem, mal vivem, pode pelo menos ter a consciência
de que Cortázar também se angustiava com questões assim, com esse acaso que
cria essas condições que nos fazem sentir culpados por simplesmente ter o mínimo
necessário para viver dignamente.
(Sim,
porque, com suas diferenças, ainda assim há muitas semelhanças entre os
miseráveis do mundo. A certa altura do livro de Julio e Manja me surpreendi
pensando, por um breve instante, que não eram peruanos, distantes muitos quilômetros
e muitos anos de mim – eram, então, os descendentes de índios que se vê aqui,
em lugares como a Redenção: empobrecidos, ignorados, mendicantes.)
Ainda que
não tenham combinado assim, como contam no início do livro, é assombroso como o
texto de Julio casa bem com as fotos de Manja: não foram feitos, necessariamente,
para se complementarem, mas há, no encontro das duas artes, expansão,
sublimação, até.
Como o caso
da foto abaixo e seu respectivo trecho:
“(...)figura
de pesadilla con la mirada fija en una meta incognoscible que puede ser la nada
o el horizonte de los cerros que es lo mismo, el hambre sin forma llenando el
aire y un tiempo que se prolongarán hasta quién sabe, la esquina, el hospital,
grande es el mundo de los pobres, muchas las piedras donde sentarse gratis, los
catres donde morir aunque morir no se dirá casi nunca, se dirá cerrar los ojos,
se dirá la abuela cerró los ojos, se dirá la hermanita se fue, se nos fue la
hermanita, le dio un pasmo, el destino.”
Não muito
menos que assustador.
(As notas
que deram origem ao texto a partir daqui foram tomadas em um café, em um
guardanapo de papel. Anedota praticamente insignificante se não o tivesse feito
como singela homenagem de um piantado
ao seu autor favorito, que não só frequentava como, por vezes, ambientava suas
histórias em cafés, esses lugares tão significaivos mas cada vez mais tão
raros...)
Falei, já,
da mistura de “As Babas do Diabo” com “O Outro Céu” que há neste livro. Outro
trecho impressionante de “Alto el Perú” é este, em que Julio reflete a respeito
do olhar de uma menina em uma das fotos de Offerhaus:
“La niña no
mira los nichos, me está mirando a mí desde un puente vertiginoso que la
arranca a esa obligación de pasado pasivo en que se mueven sus padres, la lanza
contra el objetivo cromado que la volverá imagen activa y la hará viajar de
Puno a esta casa donde ya no hay objetivo cromado ni viaje, donde ella y yo
estamos frente a frente y ella me mira como miró hacia lo que sería un futuro
inconcebible en el momento en que el puro presente de la cámara la inmovilizaba.
Yo soy su futuro y Ella mi pasado, algo que sucedió hace dos o tres años; toda
foto es la intercesora de esas operaciones del tiempo mental que los relojes y
los calendarios desmienten; ¿pero dónde están los calendarios y los relojes si
no transcurren en lo mental? Cuando Carlos Gardel canta que veinte años no es
nada, está más cerca de Heráclito y de Heidegger que el imbécil que se sonríe
ante esta frase. La fotografía, Manja, no congela el tiempo como suele decirse;
muy al contrario, lo libera de su versión primaria, nos lanza a esa indiecita y
a mí a un vértigo de espejos y de lásers, a una no mensurable cetrería a
espaldas del presente donde una pareja también de espaldas busca con el
recuerdo a Manuela Rodríguez Zum de Chavez.”
Não sei
muito a respeito de Manja Offerhaus, mas me parece que Julio encontrou nela uma
boa companheira de autoria, até mesmo no que diz respeito ao otimismo: “No
termino de decirlo y ya está ella toda uñas afuera imprecándome: no habrá
mendigos en el mañana, en el mañana estas imágenes serán las figuras rupestres
que otros niños verán en los museos, objetos de horror y asombro.”
Mas o que
nem o otimismo de Manja Offerhaus e Julio Cortázar conseguem abrandar é o
violento desespero calado do que vemos e lemos em seguida:
“Mira cómo
esa peruanita tan quieta en una esquina con su bolsa de pan (que ya es mucho,
si es de ella) intenta una sonrisa tras de la cual cabrillea una esperanza de
monedas y también de caricias porque tú eres rubia y buena, Manja, los niños se
dejan fotografiar por ti como si comprendieran que tu cámara vale más que los
discursos de los ministros; solamente que, fijate bien, ahí a los pies, en el
cordón de la acera, ¿ves las dos cruces, Manja, ves las dos cruces?”
Ainda que a
imagem de um menino quase sorrindo, coadjuvante em uma foto, anime a esperança
de Julio, a imagem da neve que cai ao fim do livro é triste, e, pelo menos para
mim, desesperançada.
A pergunta
maior que me fica é: como nós, povos da América Latina, podemos passar por
tantas misérias semelhantes e, ainda assim, nos desconhecermos tanto e, muitas
vezes, não demonstrarmos sequer a vontade
de nos conhecermos?
O que
fazemos é muito pouco. Como o inútil ato de levantar da cama às duas da manhã
para escrever este texto.