Capa da segunda edição - a primeira pela Muchnik Editores |
Já fiz aqui meu comentário sobre “Nicaragua, tan violentamente dulce”, mas volto ao assunto porque descobri que, de certa forma, meu texto está incompleto. Para começar, a edição nacional (na qual baseei meu primeiro texto) traz, no lugar do poema “Notícia para viajantes” (“Noticia para viajeros”, em espanhol), apenas o título do poema e uma foto de Cortázar.
E mais: acontece que a primeira edição do livro é de 1983, quando a Ediciones Monimbo publicou-o em Manágua. No ano seguinte, porém, a Muchnik Editores (de Mario Muchnik, amigo e por vezes fotógrafo de Julio Cortázar – inclusive no último verão da vida de JC, que passaram juntos) publicou, em Buenos Aires, uma edição aumentada (dados da bibliografia estabelecida por Gladis Anchieri para a edição crítica de “Rayuela” na Colección Archivos). Essa edição continha cinco textos a mais e, como só soube disso há pouco tempo, escrevo este texto para complementar o anterior.
Não sei por que a editora que publicou “Nicarágua tão violentamente doce” (aliás, não sei se leva vírgula, dois pontos ou nada... em cada lugar está escrito de um jeito diferente...) no Brasil usou a versão da Monimbo e não da Muchnik. Talvez questões contratuais, royalties, ou algum outro problema pouco compreensível para quem não é do ramo, como eu. Mas o problema da omissão de “Notícia para viajantes” no livro me parece que foi descuido. Nunca fez nenhum sentido para mim que uma foto de Cortázar aparecesse na primeira página do livro e com um título – ainda mais com um título que não parecia ter nada a ver com a foto. (Já se viu alguma foto que fosse a notícia, e não apenas ilustrasse a notícia?)
Enfim, o que está feito, feito está; mas é uma pena que o poema não tenha aparecido na versão nacional, porque, para mim, é o texto mais bonito do livro, pelo menos entre esses que estavam inéditos para mim até pouco tempo. Em seis quadras, Cortázar descreve um lugar onde “todo es corazón y rienda suelta/ y en las caras hay luz de mediodía,/”; um lugar que não é nenhuma das metrópoles da América Latina e a que se chega guiado pelo vento da liberdade; Manágua, “de pie entre ruinas", mais que uma terra, tem “su puerta abierta,/ todo el país es una inmensa casa”. Acredito que esta é a melhor expressão do que sentia Cortázar por aquela época; a Nicarágua era o lugar onde se sentia em casa, porque, apesar de sua ligação com a França e com a Argentina, não havia, nesses dois outros lugares, como conciliar, liberdade e latinidade.
Os outros textos não são tão poéticos, mas são intelectualmente muito aguçados. O primeiro deles, talvez o mais completo, é “Apuntes al margen de una relectura de «1984»”, em que Julio compara a realidade de então com aquela imaginada por George Orwell no livro “1984”. Misto de crítica literária com tese sociopolítica, nele a obra de Orwell e a condição do povo nicaraguense se complementam e se explicam.
Seguem-se, então, os textos que estão também na outra edição. Os textos que só aparecem nesta continuam após o último texto da outra edição, ou seja, “Discurso de recepción de la Orden Rubén Dario”. “Las batallas desiguales” é o primeiro deles. Nele, Cortázar analisa como os artigos de jornais (principalmente dos Estados Unidos e da Europa) podem distorcer a informação, negando ao seu público a realidade do que ocorria, então, na Nicarágua.
“Um sueño realizado: El arte de las Américas llega a Nicaragua” tem uma temática mais animadora: a criação e gerência de um grande museu de artes no país centro-americano. Transcrevendo trechos de uma conversa com Carmen Waugh, Julio conta como se conseguiu obter doações de obras de arte e encontrar um espaço para exibi-las, partindo de uma ideia que não centralizasse o museu em Manágua, mas que espalhasse a arte por todo o país, à medida do possível.
Em seguida, “Nicaragua: El «fast food» de las noticias” volta a comentar sobre as notícias, mas desta vez focando na inação dos leitores, daqueles que as liam mas não faziam nada, acreditando confortavelmente que apenas a adesão ideológica era suficiente. ”¿Nos vamos a quedar así, comiendo el fast food de las noticias diarias como si vinieran de Marte?”, pergunta Cortázar a certa altura do texto. E, mais adiante: “Hay momentos en que envidio al primer bonzo que se inmoló por el fuego como gesto supremo de repugnancia ante lo que lo rodeaba. Pero a la vez sé que ese no es el camino. Un pueblo se bate allá lejos por su dignidad y su felicidad: en su ejemplo está el camino. ¿De qué sirve escribir estas líneas que tanta gente tirará junto con el diario? De nada, piensa el bonzo y se pega fuego. Pero la verdadera nada, el triunfo de la entropía definitiva, estaría en no escribirlas.” O que é uma crítica que será sempre atual, seja na Nicarágua da década de 1980 ou no Brasil da década de 2010 ou em qualquer lugar e tempo.
Por fim, “De diferentes maneras de matar”, em que Cortázar fala da vontade do governo nicaraguense em negociar (os EUA cessariam de ajudar grupos antirrevolucionários nos países vizinhos enquanto a Nicarágua cessaria de ajudar forças rebeldes em El Salvador, por exemplo), vontade que não encontra recíproca nos americanos, segundo JC. É um texto longo, complexo e, creio, mais datado que os outros – mas o principal é bastante compreensível . Cortázar ajuda a entender o que quer dizer com suas comparações (como Maquiavel falando de César Borgia, por exemplo) e com conclamações (“¿Dejaremos que le claven las manos y los pies para que un insolente procónsul siga jugando con el resto del mundo en nombre de una pax... norteamericana?”).
Algumas edições ainda trazem “«Buenas noches»”, uma entrevista com Julio.
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