sábado, 6 de agosto de 2011

Imagen de John Keats

Capa de Obras Completas, volume IV: Poesía y poética



                Sempre que termino de ler algum livro do Cortázar, fico com a sensação de que gostaria de falar sobre a obra com o próprio Julio. Não para pedir explicações – acredito que ele diria que isso é coisa de lector hembra e que é preciso que cada leitor seja ativo no processo de criação do seu entendimento do conteúdo do livro –, mas para que me ajudasse a comentar o livro, nesses textos que escrevo aqui no Morellianas e que já desisti de tentar classificar.
                Suas obras são complexas (o que não significa chatas) e multifacetadas (o que não significa incongruentes), exigem bastante do intelecto e estimulam muito a sensibilidade. Por isso, um texto como este é um exercício de poder de síntese e da capacidade de conciliação de estímulos diversos.
                Em todos os outros livros que comentei aqui, essa vontade nunca foi tão grande. Eu gostaria de falar diretamente com Julio e perguntar: “Che, o que eu faço, hein? Tu me botou numa bela complicação com esse ‘Imagen de John Keats’”. Além de levar ao seu máximo todas as dificuldades que já citei, tem ainda o fato de que Keats foi um dos escritores favoritos de Cortázar e me arrisco a não conseguir passar aqui as ideias e sentimentos que JC expressa por JK. (É mais ou menos como se no futuro alguém fosse fazer um texto sobre meus escritos para o Morellianas. Imagine como o cara se sentiria, com receio de bagunçar minhas ideias sobre o autor com quem mais me identifico...)
                Os que gostam muito de classificar as coisas (famas... tsc, tsc) terão problemas com “Imagen de John Keats”. É uma autobiografia de Julio com a presença frequente de John? É uma biografia de John com uns momentos autobiográficos de Julio? É uma poética de Keats? É a poética do próprio Cortázar? É uma coletânea de poemas diversos, de Cortázar, Keats e outros muitos poetas? Um almanaque ao estilo “Último Round” ou “A Volta ao Dia em 80 Mundos”?
                O próprio Cortázar anuncia isso no início das mais de 500 páginas de “Imagen de John Keats”, em sua “Declaración jurada”:
                “Un libro romántico, aplicado a su impulso y a su tema con fidelidad de girasol. Es decir, un libro de sustancias confusas, nunca aliñadas para contento del señor profesor, nunca catalogadas en minuciosos columbarios alfabéticos. Y de pronto sí, de pronto ordenadísimo, cuando de eso se trata: también al buen romántico le llevaba un método el hacerse la corbata a la moda del día.”
                Acho que resultaria plenamente inútil que eu tentasse escrever este texto como escrevi os outros: tentando dar uma visão geral e em seguida passando a comentários menores sobre todas as coisas interessantes que encontrei pelo caminho de leitura. Isso seria inútil porque o livro é todo interessante; em cada página encontra-se algo que impressiona, diverte, maravilha...
                Fiz mais de dez páginas de anotações e agora que chega a hora de usá-las me dou conta de que duas coisas poderiam acontecer: ou as anotações se tornariam vazias, não significando muito para quem não leu o livro, ou acabariam estragando as surpresas de quem ainda pretende lê-lo. Como diz o próprio Julio Cortázar lá pela página 856 dessa edição que li “toda reseña es otra cosa”.
                Quase duas laudas já escritas e me dou conta de que não falei quase nada sobre “Imagen de John Keats”. Bem, vou fazer o melhor com as anotações mais destacadas que tenho (destaco com o sentimento mais do que com a razão, o que, de certa forma, já é uma boa aproximação ao livro).
                É um livro bem Cortázar, com quebras de parágrafo ajudando na composição das ideias; com a declaração, logo no início, de que o livro “responde a la mayor libertad posible de expresíon”; com um primeiro texto que se fecha muito cortazarianamente:

“Y com esto, librito, ábrete a los juegos.”

                O que Cortázar pretende, e anuncia também logo de início, não é uma biografia, não é um estudo teórico (embora, no fim das contas, acabe sendo um pouco disso e muito mais). “Simplemente me divierte ir paseándome por mi memoria, del brazo de John Keats, y favorecer toda clase de encuentros, presentaciones y citas”, escreve, deixando claro que nem por ser sobre um autor clássico  livro vai ser espaço para academicismos exagerados. E completa: “Voy del brazo de Keats, actitud más natural para conocerlo que la otra tan frecuente, en que al pobre lo izan en una nube mientras el crítico junta mesas y sillas para armarse una plataforma que no hacía la menor falta”.
                Aos poucos, sem uma linha cronológica, com muitas idas e vindas (temporais, temáticas etc.), Julio traça um perfil de Keats. Um perfil em que os leitores mais assíduos de Julio verão muitas semelhanças com o perfil de Cortázar. Um exemplo é quando há a seguinte citação de John, sobre Byron: “él describe lo que ve, yo describo lo que imagino”. Essa frase bem poderia ser de Julio, não concordam?
                 As páginas do livro que não são dedicadas a John (pelo menos não diretamente) também são ótimas. Como “Fotomatón del poeta”, espécie de retrato instantâneo (daí o nome do texto) do homem da poesia, que à primeira vista soa como crítica demolidora (“Los tipos son desagradables” diz Julio) é na verdade um grande reconhecimento a esses homens que estão à margem, porque, conclui Julio, “no se puede ser agradable sin formar parte del cuadro”.
                É interessante ver como Julio parece entrar na vida de John, como no trecho em que imagina como foi a adolescência do poeta inglês:
               
                “(...) habrá sido turbia como todas, con malos sueños y
solitarias compensaciones, con desesperada
ansiedad de pureza y amores de llorar a gritos, de
desnudarse ante un espejo y apoyar suavemente un
cuchillo en la piel que enguanta el corazón,
y necesitar de la muerte, tan seguro de que luego será
hermoso irse a pasear y tener un hambre de lobo,
y nombre murmurados contra el falso vientre de una almohada, monólogos como el oboe de Tristán, obscenas ilusiones, medianoches de frente ardida, entre-
                gado delicadamente a la lengua de las estrellas (…)”

                Esse trecho já é bastante impressionante, mas o retrato de toda a vida sentimental de John (em especial com Fanny Brawne) ainda aumenta a sensação estranha de que estamos lendo um romance escrito por Cortázar, não uma aproximação baseada em dados biográficos difusos que Cortázar leu em vários livros sobre John e em sua correspondência.
                Quando estamos muito instalados na Inglaterra de Keats, Cortázar nos traz de volta com um parágrafo no presente da escrita, em que conta, por exemplo, que o verão vai embora e que se despediu dele às margens do Tigre (rio da Argentina), atento aos insetos e sem saber dos jornais, o que era uma maneira de se aproximar de John, da poesia da qual disse “Yo no sé de otra poesia más leal, mas honrada que la de John”, porque não explorava suas condições pessoais (assim como nunca o fez Cortázar, que falava de si ao falar da esfera exterior a si).
                (Uma coisa deve chamar a atenção de todos que leram “O jogo da amarelinha” antes de “Imagen de John Keats”: no fim da seção “Fin de jornada”, uma nota de rodapé diz que o leitor interessado em seguir imediatamente a fase final da vida de John pode saltar para o capítulo específico. Seria essa atitude uma avó da mecânica de saltos de “O jogo da amarelinha”?)
                Agora, reparem no seguinte trecho, em que Julio cita uma carta de John:

                “’Cada día me convenzo más de que el escribir bien sigue inmediatamente al hacer bien (…)’. (…) esta jerarquización de la acción y la escritura (…) prueba que para John su forma natural de acción es la obra escrita, sin vanas y vagas ideas de ‘actividad’”.

                Isso se assemelha muito ao que Cortázar expressava na época de seu envolvimento mais profundo com os regimes sociopolíticos na América Latina: que a escrita não deixa de ser ação, que é sua “ametralladora específica”.
                O capítulo em que estão as coisas que comentei nas últimas linhas é o mais denso, o mais complexo, mas também é o capítulo em que mais se vê a genialidade de Cortázar (embora seja quase certo que ele não gostaria de ser chamado assim). Uma prova disso, em “Poetica” (é o nome o capítulo) Julio explica por que as pessoas em geral tentam entender os objetos (“La conducta lógica del hombre procede siempre en el sentido de defender la persona del sujeto (...) Y si lo obsesiona conocer, es un poco por hostilidad, por temor a confundirse”) enquanto o poeta renuncia a se defender para experimentar a “outridão”, para “(…) sentirse a cada paso otro, de salirse de sí para ingresar en entidades que lo atraen”.
                Entre uma e outra reflexão tão teórica, quase acadêmica, Julio brinca para nos lembrar que o livro é de um cronópio: “La inevitable pedantería [dos trechos anteriores] es de las que lo hacen a uno odiarse todas las mañanas, a la hora del espejo y el cepillo de dientes”.
                Outro momento memorável do capítulo é a comparação (melhor seria dizer “analogia”, já que disso ele trata magnificamente em um trecho anterior) que Julio traça entre o poeta e o xamã. Vale a pena citar:

“Se dice que el poeta es un "primitivo" en cuanto está fuera de todo sistema conceptual petrificante, porque prefiere sentir a juzgar, porque entra en el mundo de las cosas mismas, no de los nombres que acaban borrando las cosas, etcétera. Ahora podemos decir que el poeta y el primitivo coinciden en que la dirección analógica es en ellos intencionada, erigida en método e instrumento. Magia del primitivo y poesía del poeta son, como vamos a verlo, dos planos y dos finalidades de una misma dirección.”

Mais adiante Julio completa a figura que faz do poeta: “hacedor de intercambios ontológicos” ; “el poeta significa la prosecución de la magia en otro plano, y, aunque no lo parezca, sus aspiraciones son aun más ambiciosas y absolutas que las del mago”; “Todo poeta parece haber sentido que cantar un objeto (un ‘tema’) equivalía a apropiárselo en esencia; que sólo podía irse hacia otra cosa o ingresar en ella por la vía de la celebración”. (Não queria povoar tanto assim o texto com citações, mas o próprio Julio me autoriza, confiram o início do livro.)
O fechamento do livro relata o fim da vida de Keats, e é singelo e íntimo, como deve ser um texto sobre alguém tão íntimo ao autor como seu autor favorito. Segue-se um apêndice, com pequenos textos sobre três textos “menores” de Keats – inacabados ou pouco reconhecidos pela crítica, dos quais me parece o mais interessante, por seu tom cômico, aquele cujo título Julio traduziu como “El gorro y lós cascabeles” (falando em traduções, na edição que tenho aqui, Aurora Bernárdez revisou as traduções feitas por Julio – mesmo JC tendo a intenção de revisar as traduções antes de publicar “Imagen de John Keats”, a revisão de Aurora não me agrada. Gostaria de ver como Julio traduziu originalmente os poemas, títulos e citações).
Para acabar (quem estará mais cansado? Eu, de escrever, ou vocês, de me ler?), duas citações : uma de Saúl Yurkievich (em “Nota a esta edición”) e uma de Julio – já abusei das citações, mas além do aval de Julio, tenho certeza que elas casam bem com o espírito deste meu texto.

“(...) libro romántico, de substancia confusa y efusiva, Cortázar se divierte paseándose por su memoria del brazo de Keats (…) [Keats] habita como el poema en el ahora, e incita a la visión directa, sin intención previa, a una absorción en vivo de las cosas, a convertirse en esponja fenoménica”. S.Y. (Esponja: imagem que Julio prezava muito)

“[“Imagen de John Keats” é] um belo livro, solto e despenteado, cheio de interpolações e saltos e grandes voos e mergulhos, um livro como os poetas e os cronópios amam”. J.C. (no texto “Toca do camaleão”, de “A volta ao dia em 80 mundos”, tomo II).

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