terça-feira, 26 de outubro de 2010

Correspondencia

Capa da edição atual, da Alpha Decay


            Cortázar escreveu uma quantidade impressionante de cartas. No projeto de publicação de suas Obras Completas, pela editora Galaxia Gutenberg (ainda não publicado inteiramente), as cartas cortazarianas têm dois volumes exclusivamente dedicados a elas – além das cartas, só os romances ocupam dois volumes, mas um deles é dividido com a obra teatral. E leve-se em conta o tamanho considerável que têm os romances do Julio...
            Muitas cartas importantes de Cortázar foram publicadas em livros de miscelâneas (por exemplo, “Situação do intelectual latino-americano”) pela sua importância e grande clareza de visão. Mas, das poucas cartas de JC que tinha lido anteriormente, nenhuma tinha o tom intimista e até confessional dessas que aparecem em “Correspondencia”, de autoria de Cortázar, Carol Dunlop e a tradutora de Cortázar para o servo-croata, Silvia Monrós-Stojaković.
            O livro é prefaciado pela própria Silvia e abarca correspondências entre 1980 e 1983, pouco antes da morte de Julio. Por isso mesmo, durante o livro vai crescendo um sentimento de tristeza, de agonia, que propicia reflexões e confissões entre os correspondentes, embora não tire completamente das cartas um fino senso de humor e certa maneira corajosa de encarar a vida (as vidas, no caso).
            As cartas de Silvia são uma grata surpresa. Ela não só é divertida (partilha muito bem do estilo de cronópios e piantados de Julio e Carol) e dialoga brilhantemente com Carol e Julio (me parece que a maior comunicação se deu entre as duas, exceto depois da morte de Carol, quando Julio teve ele mesmo de escrever à amiga) como também tem um poder de observação muito aguçado da composição de Cortázar (ela menciona a repetição de alguns verbos) e do ofício da tradução (quando lhe enviam a tradução de “Rayuela” para o inglês feita pro Gregory Rabassa, ela analisa as escolhas do americano). E suas escrita é muito criativa, dotada de uma fluidez de uma graça que aumentam o nosso gosto em ler.
            Assim como Carol também é muito criativa, usando metáforas (brilhantes como muitas das que Cortázar escreveu) feito esta, escrita em uma carta enviada a Silvia, data de agosto de 1981:

"Me encantan tanto tus cartas, que casi me siento culpable de contestar (pero las cartas de veras, no se contestan, llaman a otras cartas y al final se hacen serpientes en el aire, y la gente que saben deslizar la mirada entre aire y nubes saben que son puentes, puentes donde se puede ir y venir y inclusive encontrarse, y sí, es cierto que la gente se puede contestar, pero los puentes, no"

Assim, vai nascendo uma relação à maneira dos puzzles de Cortázar, como sugere Monrós-Stojaković – as confidências e as confianças mútuas crescem, se aprofundam, mesmo Silvia só tendo visto Carol uma vez (e jamais tendo conhecido Cortázar pessoalmente), através das cartas, que Silvia classifica de “la escritura más puente que haya”, porque vai diretamente ao outro.
            Carol conta, nas cartas, coisas íntimas, histórias do filho, do ex-marido, de sentimentos conflitantes, da doença de Julio (de que ele ainda não sabe, ao menos não tanto quanto ela); Silvia conta da luta por justiça na então Iugoslávia, do marido e dos filhos, e de sua amante que a abandona sem que ela consiga entender exatamente o porquê, embora especule lindamente.
            Quando Carol morre, é Cortázar o interlocutor de Silvia, em cartas muito mais breves que as de Carol. Julio está angustiado pela perda de sua companheira pouco depois de sua viagem pela Autopista do Sul. A última carta é de Silvia. E se teve resposta, não figura no livro. Mas é improvável que tenha tido, pois, no início de 1984, Cortázar morria.
            Apesar de algumas lacunas no puzzle formado pelos três excepcionais correspondentes (certamente falta uma carta ou outra), “Correspondencia” nos permite conhecer um dos períodos mais belos e mais duros da vida de Cortázar – seu amor por e com Carol e o fim da relação causado por duas mortes muito próximas, como se um corresse ao encontro do outro para continuarem a percorrer sem pressa outras cosmopistas cheias de encanto.

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