terça-feira, 24 de agosto de 2010

As armas secretas


Capa da edição atual, da José Olympio
            Gosto de ler Cortázar porque me surpreende, porque parece zombar de minhas anteriormente tão firmes convicções sobre seu estilo. Sem invalidar tudo que sei – se bem que esse termo é insidioso em se tratando desse quebra-cabeça em forma de produção literária – muda o panorama que eu construíra. Não, quebra-cabeças têm só uma possibilidade de serem montados e se lhes falta uma peça acontece o enfado, a frustração. O que Cortázar escreveu é mais como um tangram: as peças são intercambiáveis e formam formas distintas. E se falta uma peça ainda podemos nos divertir, formando figuras mais simples. Até que achemos as que faltavam e aí completa-se o tangram e todos seus resultados possíveis estão disponíveis, bastando imaginação para descobri-los todos (se é que são em número finito).
            Mas divago, divago. Isso tudo serviu de preâmbulo para dizer que “As armas secretas” serviu para que eu me questione até que ponto Julio Cortázar pode ser chamado de um contista do fantástico. Claro, textos os contos de Bestiário e alguns dos que compõem Histórias de cronópios e de famas são inopinavelmente fantásticos, fantasiosos, seja lá o melhor nome que se possa dar para eles, que mais lhes faça justiça. Mas em “As armas secretas” parece predominar o humano, as relações sociais e os laços sentimentais.
            O primeiro conto, “Cartas de mamãe” tem a mesma temática de “A saúde dos doentes”, do livro “Todos os fogos o fogo”: Um morto e algumas cartas provocam desconforto e tensão interpessoal. Um final interessante, que não desagradará aos admiradores do Cortázar fantástico, que com algum esforço interpretativo podem avaliar de maneira diversa o final.
            “Os bons serviços”, em seguida, é outro conto sobre relações. Uma ingênua senhora toma parte em eventos que não compreende bem, mas que se insinuam mais claros para os leitores.
            “As babas do diabo”, terceiro conto do livro, é o mais parecido com o que Cortázar escreveu nos outros livros que citei acima. Conto famoso, bastante comentado e avaliado. É sobre um fotógrafo que acaba capturando o que não deveria com sua câmera e faz uma ampliação da foto, que pendura na parede de seu escritório. As estranhas coisas que acontecem com a ampliação acabam são apenas parte da grandiosidade desse conto, que tem na forma narrativa um grande trunfo.
            Em seguida, “O perseguidor” lida com um dos gostos mais declarados de Cortázar: o jazz. É a história de um jazzman de personalidade confusa, porém genial, que vê o que os outros não vêem e percebe o tempo de maneira diversa do comum. Apesar dessa característica fantástica, o que mais “pesa” no conto é a relação dos companheiros de música, das mulheres e do personagem narrador do conto com o referido músico, Johnny. Bruno, o personagem que narra a história, está escrevendo a biografia de Johnny, e essa relação intrigante dos dois dá a tônica do conto muito mais do que dão as percepções estranhas do jazzman. Um conto muito longo para os padrões do escritor argentino.
            Finalizando o livro, o conto que dá a ele seu título. “As armas secretas” é a história de um casal de jovens que tem um bom relacionamento, embora sempre haja determinada barreira entre eles que não conseguem transpor. A tensão cresce no fim do conto, e o foco da mesma desvia bruscamente para um ponto fora do centro do relacionamento dos dois. Uma história sobre como o passado afeta o presente, e como nem tudo que parece é.
            Assim como Cortázar, que tem muito mais a oferecer a seus leitores além de suas obras ditas fantásticas.

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