segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Todos os fogos o fogo


Capa da edição atual, da Civilização Brasileira
            É tão ruim ver essa página em branco como que debochando da minha incapacidade temporária de vencê-la... Agora é quase tão difícil de vencer essa força estúpida como foi à ocasião de resenhar “O jogo da amarelinha”. É que assim como “O jogo...” surpreende por ser diferente do resto da literatura que se leu anteriormente, “Todos os fogos o fogo” desarma a expectativa que se tem de encontrar em suas páginas um Cortázar fantástico (da literatura fantástica, fique claro, não da qualidade de composição) como em outras obras. Mas aí está o excepcional em Cortázar: é mudando que ele mantém a sua unidade.
            No livro encontramos oito contos de estilos variados, com histórias muito diversas entre si no conteúdo e na maneira de serem contadas. “A auto-estrada do sul” começa com ares típicos de Cortázar, com uma situação inusitada que se transforma em desconforto e tensão. Mas, quando tudo se encaminha para um final fantástico, vemos que a situação servia como símbolo de algo mais profundo, e muito mais humano. Em seguida, “A saúde dos doentes”, que talvez seja o conto mais próximo do fantástico que vemos em “Bestiário”, por exemplo: o poder da auto-sugestão serve como forma de brincar com os limites da realidade.
            “Reunião”, logo após, é um relato de guerra muito interessante e emocionante, na visão de uma figura importante da história, embora ainda não o seja no momento da narrativa. O conto seguinte, “Senhorita Cora” é um de meus favoritos, se não for o favorito: a relação de um adolescente com a enfermeira pouco mais velha que ele não representa somente as relações de conquista, mas também de amizade, solidariedade e esperança. Um conto que, além do conteúdo, tem uma forma genial, com as frases dos personagens se entremeando, de forma que é preciso perceber pelo contexto quem é que fala.
            O quinto conto é “A ilha ao meio-dia”, a história de um comissário de bordo que percebe uma ilha que nunca notara antes no trajeto de seus vôos. A ilha é sempre vista em torno do meio-dia e ele decide viajar até lá, para descobrir mais sobre ela. O final é intrigante e, pelo que vi na internet, eu fui o único a pensar que o encontro no final do conto é de Marini consigo mesmo (o que tornaria esse conto mais próximo do Cortázar fantástico). Depois, “Instruções a John Howell” lida com os limites entre fantasia e realidade, misturando os dois a ponto de não sabermos mais separar um do outro: um espectador de uma peça vê-se obrigado a participar dela como ator e envolve-se numa trama complicada.
            Fecham o livro “Todos os fogos o fogo” e “O outro céu”. O conto que dá título ao livro conta duas histórias em paralelo, que irão se encontrar de uma maneira muito peculiar em seus desfechos, ambas marcadas fortemente pelos relacionamentos amorosos dos protagonistas. “O outro céu” é um conto que eu precisei ler mais de uma vez para compreender melhor, pois o personagem transita entre lugares da Argentina e da França, provavelmente de maneira imaginária, mas sem explicação clara. É um conto sobre a acomodação à realidade e perda dos sonhos, eu creio.
            Agora percebo que talvez não haja tanta ausência de características fantásticas ao livro. Mas com certeza essas características desempenham papel secundário nas histórias e aparecem de maneira mais branda, dando espaço para que se saliente o aspecto humano das narrativas. E se Cortázar é fantástico, agora no sentido de excelente, é justamente por retratar com magnificência aquilo que é inerente ao ser humano, sua verdadeira natureza e paixões.

Nenhum comentário:

Postar um comentário