terça-feira, 31 de agosto de 2010

Último round - tomo II

Capa da edição atual, da Civilização Brasileira


            Dando continuidade à resenha de “Último round”, comento agora o segundo volume (a divisão da resenha em duas partes é explicada na primeira delas). Neste, temos quase o mesmo número de páginas, porém a quantidade de textos é bem maior: são cinqüenta e sete textos agrupados no mesmo estilo do primeiro tomo, diversos em forma e conteúdo.


             Este segundo tomo tem textos muito interessantes, o que tornou difícil fazer uma seleção daqueles que comentarei. Mas como sempre se tem de começar por algum lugar e seria enfadonho e penoso comentar todos os textos, vai abaixo a seleção dos que considerei mais relevantes e gostosos de ler.


            Já o primeiro texto é um deles: “A entrada em religião de Teodoro W. Adorno” conta a história da relação de Cortázar com um gato sem dono que aparecia em sua casa de campo, em Saignon, França. Cortázar e sua companheira davam ao gato os cuidados que ele precisava e também comida, mas sempre o deixavam livre, não levavam o animal consigo quando voltavam a Paris. É uma história triste, eu acredito, sendo a única feição um pouco cômica o nome do gato, que de certo foi homenagem ao filósofo alemão Theodor Adorno.


            “Ciclismo em Grignan” é sobre um dos assuntos mais recorrentes em Cortázar: o tempo e a sua seqüenciação. Mas, além disso, há teor erótico nesse texto, um teor encontrado em outros textos que aparecem mais adiante no livro. Claro, esse erotismo aparece expresso com muita sensibilidade, como é habitual do autor, mas aqui parece que esse erotismo se mostra mais, não ficando tão velado.


            “Desjejum” é um conto simples em seu enredo, nada de especial acontecendo. O que ele tem de diferenciado é a maneira como os personagens chamam-se, um jeito bastante heterodoxo e que, digo pro experiência própria, bagunça a cabeça e provoca o riso.


            Os poemas também estão presentes nesse segundo volume, embora, na minha opinião, a obra “não-poêmica” (permitam-me o neologismo) de Julio ainda seja seu melhor. Mas há gratas surpresas, como “Cenotáfio”, e a série de poemas “Naufrágios na ilha”, onde Cortázar novamente tem por tema o sensual (e o expressa bem à sua maneira, ou seja, sem ser muito figurativo). Por falar nisso, em “/vamos todos cirandar” (assim mesmo, com uma / antes do “vamos”), é discutida a aparente incapacidade dos escritores em prosa representarem de maneira satisfatória a sensualidade, o erotismo. Cortázar advoga que não tínhamos na América Latina tradição em narrar essas belezas humanas de maneira sensível, ao contrário dos franceses e ingleses, por exemplo; e que não adianta nada ler Miller ou Bataille se não aprendermos com eles a tratar de maneira diferente essa temática.


            “A imiscussão terrupta” lida com palavras forjadas por Cortázar e provoca um estranhamento mais ou menos como “Desjejum”, mas em outro nível. Para quem já conhece o glíglico de Oliveira e Maga em “O jogo da amarelinha”, não será motivo de muito estranhamento.


            “Diálogo das formas” é um texto sobre as obras do escultor Reinhoud. Após o breve texto, há fotos das obras com textos que seriam como as falas delas – um exercício criativo muito criativo de Cortázar.


            “Cristal com uma rosa dentro” é um dos textos citados pelo autor em seu livro de conversas com Ernesto G. Bermejo como uma das referências que podem ajudar a compreender seu livro “62: Modelo para armar” e relata as sensações de Cortázar durante as experiências pelas quais passa, nas quais fatores independentes juntam-se de maneira pouco compreensível e formam uma outra coisa, nova e independente.


            “Marcelo do Campo” e “Una voce poco fa” também são, como “Diálogo das formas”, homenagens a artistas. Marcelo do Campo é uma emocionante homenagem a Marcel Duchamp, que Cortázar liga, de certa forma ao já citado Oliveira de “Amarelinha”, enquanto “Una voce poco fa” é uma reflexão sobre a banalização das tecnologias que nos permitem ouvir músicas cada vez mais comumente, sem nos darmos conta do milagre que é reproduzir o instante de expressão vocal de um artista, como os vários citados ao longo do texto. Um texto que aparece mais adiante também é semelhante a esses: “Salvador Dalí, sem valor adalide” é uma homenagem e, não exatamente uma defesa, mas um depoimento a favor de Salvador Dalí e de sua maneira de fazer arte.


            Mas antes do texto de Dalí, “A noite em Saint-Tropez” é um texto tenso e intenso sobre a gente rica e fútil que circula no balneário francês. Cortázar consegue dar bem a impressão de futilidade dos seres e de endeusamento dos objetos. Só não compreendo se Joyce Mansour é criticada ou homenageada com o texto.


            Por falar em textos tensos... “Sesta” é o mais tenso deles nesses dois volumes, acredito. É também um dos contos onde a presença do sensual se faz mais presente e, vejam só, foi o texto que mais me lembrou do Cortázar do fantástico. Certamente um dos melhores textos de todo “Último round”: confunde, desorienta, e deixa o leitor tenso até a sua conclusão. Sem nenhum pudor de ser informal, é um baita texto.


            “Sobre a situação do intelectual latino-americano” é um texto político, no qual Julio deixa clara sua posição política e sua admiração pelo socialismo. Um texto muito interessante para compreender como se deu o processo de “desalienação” social e literária. Só imagino o que ele pensaria se estivesse vivo hoje e visse o que resta dos regimes socialistas...


            E, enfim, “Aos maus entendedores” estabelece relação com um texto do primeiro tomo, “Descrição de um combate, ou para o bom entendedor”, e trata das repercussões da derrota de um boxeador argentino. Uma maneira de reforçar a unidade entre os dois tomos de um grande livro, de um Cortázar em ótima forma literária.

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