domingo, 22 de agosto de 2010

Bestiário

Capa da segunda edição, da Expressão e Cultura

            Reli, pela primeira vez, um livro de Cortázar completamente. O fiz porque lera o livro fazia já muito tempo e não queria correr o risco de ser injusto com ele por conta de falhas da memória. Mas me dei conta que será impossível resenhar minha leitura de “Bestiário”: a única leitura que fiz foi a primeira.
Todas as leituras a partir de então são releituras, formas de expandir aquele universo fantástico, de aprofundar-se nos enigmas do autor – aprofundar-se, mas não de descobri-los por completo, muitas vezes. A releitura contrasta ainda mais com a leitura porque agora sou leitor já experiente de Cortázar e reconheço mais seu estilo, seus métodos e suas maneiras de deixar implícito algo que talvez não seja crucial, mas que desempenha papel discreto porém importante na trama.
            “Bestiário” é um livro de contos, oito no total. O melhor a fazer é analisá-los individualmente e comentá-los, sem cair na besteira de acreditar que se estão juntos é porque o autor quis, com essa união, dizer algo obscuro. Como diz Remy Gorga Filho na orelha deste Bestiário, “se for assim, liquidamos de uma vez com toda a riqueza da ambigüidade, clara e inequivocamente desejada por ele”.
            “Casa tomada” é provavelmente o conto do livro do qual mais se falou. Um casal de irmãos tem parte de sua casa tomada e passam a viver no restante dela. É um conto do terror em relação ao desconhecido à primeira vista, mas pode denunciar o conformismo, a ausência de resistência contra imposições, contra os abusos e aquilo que tomam de nós.
            “Carta a uma senhorita em Paris” foi o primeiro conto de Cortázar que li, e vem na seqüência do livro. Um homem tem o hábito de vomitar, quase que soluçar, coelhinhos e isso se lhe torna um problema. É um conto de aparente candura no início, porém a situação converge para uma situação final surpreendente. Aqui o absurdo é conduzido também com naturalidade, apesar da surpresa.
            “A distante” parece ter um enredo adequado a uma adaptação para um episódio de “Além da imaginação”: a personagem sente que a outra de si, seu oposto, seu complemento, em outra parte do mundo. “A distante” mostra duas relações interessantes que desejo comentar. A primeira é com os palíndromos, construções interessantes de que Cortázar gostava bastante e demonstram a inteligência que tinha o escritor belga-franco-argentino. A outra é a semelhança com o texto “Uma flor amarela”, também de Cortázar, publica no livro Final de jogo. Aqui também há um outro em que a personagem principal está ligada, e o final também é trágico.
            Por falar em flores, nota-se também a relação de “Uma flor amarela” (a saber, li o conto em separado, mas não li o livro onde fui publicado) com o conto que vem em seguida em “Bestiário”: “Ônibus”. Todos os passageiros do 168 levam flores, exceto os protagonistas. Uma metáfora bem interessante por trás de um enredo que é quase um thriller.
            “Cefaléia” mostra a história de criadores de mancuspias (outra criação de Cortázar, bem como cronópios, famas e esperanças) e as dificuldades pelas quais passam. Além disso, é interessante a classificação de dores de cabeça que lhes acometem. Uma possível alegoria dos problemas que a ganância – ou a hipocondria – pode trazer.
            “Circe” é um conto que me lembra das crônicas de “A vida como ela é...”, de Nelson Rodrigues, pelo ambiente, pela história e pelo desfecho que redobra o peso que parecia ter sido aliviado dos ombros do leitor, que quase se acostumava a uma realidade confortável. O que há de tão terrível na filha dos Mañara, que já perdeu dois namorados em circunstâncias estranhas?
            “As portas do céu” também lida com o sobrenatural, mas além desse viés de análise há o do protagonista, que vê o amigo e a amiga quase como experiências a serem catalogadas. Claro, a ambigüidade está presente, como usual: viram o que viram, de fato, ou foi a bebida? Há um belo clima do “submundo” argentino nesse conto.
            O livro encerra com conto homônimo, que é muito mais profundo do que a existência de um tigre em uma casa, na qual vai passar um tempo a menina Isabel. Ao final de conta resta a pergunta: qual a noção de experimento que Isabel tem? Foi por vingança? Foi por justiça? Foi por querer observar hábitos de animais maiores? Um conto muito interessante, no qual o mundo infantil é relatado de forma peculiar.
            “Bestiário”, então, é um livro que pode, sim, ser lido. Mas deve ser principalmente relido, por acrescentar maior relevo, mais profundidade e diversidade ao conhecimento cortazariano do leitor. É possível apreciá-lo como um delicioso bombom. E, nesse caso, não é preciso temer o conteúdo-recheio: é dos melhores e mais saborosos.

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