terça-feira, 17 de agosto de 2010

O jogo da amarelinha


Capa da edição atual, da Civilização Brasileira
           Fazer uma resenha, uma crítica, uma avaliação, ou seja lá o nome mais apropriado que tiver o que intento fazer agora, sobre “O jogo da amarelinha” de Julio Cortazar é uma das tarefas mais complexas, porém deliciosas, a que alguém pode se dispor. E foi por esse preciso motivo que sugeri que inaugurássemos, Gabriel e eu, este Morellianas (nome também inspirado pela obra que comentamos) com nossos pontos de vista sobre esse livro.
            A empresa é difícil por tantos motivos como os que fazem de Cortázar mais que um gênio (adjetivo que Cortázar talvez chamasse de “palavra cretina”), o criador de uma nova espécie de expressão para a qual não há nome e a que se pode chamar, incorrendo em uma injustiça limitante da obra do autor, de “nova forma de literatura”. Mas não é literatura o que encontramos nesse “O jogo da amarelinha”, nem mesmo uma literatura em nova forma. É mais: Cortázar engendrou e tornou possível a interatividade da trama em um nível ainda não superado nos dias de hoje e sua alardeada interatividade digital. E o paroxismo da interatividade cortazariana deu-se (e ainda dá-se, visto que, para Cortázar, o tempo é mutável e relativo) nesse livro.
            E se a obra de Cortázar não é literatura, pelo menos não a convencional, eu não poderia construir uma crítica literária das convencionais. Por esse caráter diferencial dos escritos do maior contista latino-americano é que recomecei estas linhas depois de já estar na metade das idéias. Ler Cortázar é questionar tudo o que se leu antes e perguntar se aquelas obras têm mesmo o mérito que se lhes atribuem. Inclusive as que nós mesmos criamos.
A obra toda de Cortázar poderá aparecer avaliada mais abrangentemente aqui nas nossas Morellianas futuramente, já que somos, Gabriel e eu, grandes admiradores do autor. Porém, para começar, sugeri uma crítica compartilhada do mesmo livro, o que espero que agrade o espírito inovador de Julio Florencio. Apresentaremos avaliações de dois caminhos que conduzem, ambos, do início ao fim da obra, embora percorram itinerários diferente. A mim coube a leitura na ordem padrão, e a Gabriel a leitura “salteada” sugerida por Cortázar.
O livro é dividido em capítulos essenciais e prescindíveis. Li “O jogo...” como se leria qualquer outro livro, dos mais lamentáveis aos mais próximos do sublime, contrariando a sugestão de Cortázar para subverter a ordem natural das coisas. O benefício dessa forma de leitura é a maior clareza com que se chega ao fim da história central, porém perde-se um pouco da força dos trechos prescindíveis, que, lidos mais tarde, à parte do texto “fundamental”, podem não nos fazer lembrar a que mesmo se referem, a que evento estão ligados, o que explicam. Lendo dessa forma e ignorando os capítulos prescindíveis, a história fica em aberto, deixando ao leitor uma outra forma de interatividade, a de imaginar o seu final favorito. Ler dessa forma e, em seguida, caminhar com vagar pelos capítulos prescindíveis dá gosto como comer uma fruta madura recém colhida, pois esses capítulos são, na maioria, breves e espirituosos.
            O enredo do romance (se é que se pode classificar qualquer coisa que Cortázar tenha escrito como se classificaria algo feito por escritores comuns) já foi definido de diversas formas, sendo a mais injusta, a meu ver, a versão que dá conta de que o livro é sobre o próprio livro. O livro não discute a si mesmo, não é sua razão de ser, seu fim. Apesar de jogar – e essa é uma palavra-chave em toda obra desse cidadão do mundo: jogo – com as formas cristalizadas da produção literária, questionando e mitigando certezas e dogmas literários, isso é secundário. A prova? Pergunte quantos leitores da obra (e, ipso facto, seres inteligentes) se encantaram com a descrição de um beijo ou se emocionaram com a carta de uma mãe a um filho morto. “O jogo...”, é emocionante porque o drama da busca de Horacio (honde hestará ho que hele procura hem suas divagações honipresentes?), a ignorância e o sofrimento de Maga, as discussões sobre jazz, pintura, política e metafísica d’O Clube e tudo o mais que encontramos nas mais de 600 páginas do livro (número que não faz a leitura cansativa ou maçante) são coisas da vida: da minha, da tua, da dele e de todos. É isso. O assunto do livro, o enredo desse livro que muda vidas, se não é injusto limitá-lo a um só tema, é a própria vida e suas vicissitudes. E esse é o encanto do livro, isso é o que o faz conquistar talvez poucos mas tão fiéis leitores-jogadores: Todos nós somos como Horacio, buscamos algo que não sabemos ou não queremos definir, para prolongar a mágica busca, por nosso interior e também exterior. De passo em passo, num só pé, com cuidado para não perder a pedrinha, alcançamos o céu. Ou pelo menos alcançamos mate e batatas fritas.

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