domingo, 29 de agosto de 2010

62: Modelo para armar

Capa da edição atual, da Civilização Brasileira


            “62: Modelo para armar” é um livro um pouco complicado de se ler, por uma série de motivos. O primeiro é que muitos devem lê-lo (como eu li) esperando uma continuação de “O jogo da amarelinha”, livro que tem no capítulo de mesmo número as idéias centrais deste outro livro, posterior. Acontece que a semelhança não se dá com os personagens (infelizmente não vemos Oliveira aqui) nem com a organização do livro, embora ela não seja absolutamente contrastante: em “62” também se encontra a reflexão sobre o que somos e, é claro, as relações sociais e sentimentais, o verdadeiro ponto forte da obra cortazariana. Tudo isso sem divisão de capítulos. Os trechos são separados por espaços maiores entre cada bloco.

            O segundo motivo é que no início da narrativa aparecem espaços vazios, menções a coisas, eventos, pessoas desconhecidos, que só serão preenchidos mais adiante, finalmente dando sentido concreto ao que lemos no início (Frau Marta, as bonecas de monsieur Ochs, entre outros). Esse tipo de coisa é muito interessante, mas cria uma tensão e uma expectativa que de tão intensas (e não satisfeitas logo) fizeram a minha leitura truncada. Tive de reiniciar a leitura umas três vezes e quase desisti definitivamente, com um pouco de raiva do livro.

            O terceiro motivo é que dei outra interpretação ao capítulo 62 de “Amarelinha”, diferente da que Cortázar queria, creio: imaginei que ele criticava a tendência a pensar no ser humano como resultado de uma soma de genes, uma combinação meio aleatória e que não deixa espaços para sentimentos, pensamentos, emoções: seria tudo resultado de interações bioquímicas. Cortázar referia-se a outras interações: as humanas, isto é, entre humanos. Para a compreensão mais clara de “Modelo para armar”, recomendo a (re)leitura de “O jogo da amarelinha” e, se possível, a leitura de “Conversas com Cortázar” e, os nele mencionados, “Cristal com uma rosa dentro” e “A boneca quebrada”, que podem ser encontrados no livro“Último round”

            A idéia desse romance é de fato interessante: demonstrar como somos mais do que aquilo que somos individualmente; não o foco no indivíduo, como integrante de um grupo, de uma rede de ligações com outros, mas a própria rede como uma entidade da qual os indivíduos fazem parte, desempenhando ações que aparentemente são fruto de livre-arbítrio, mas que, a fundo, são parte do movimento conjunto, engendrando um complexo mas coerente sistema.

            A comparação pode soar bastante ridícula, mas em um ponto eu achei “62” parecido com certas telenovelas: os momentos reflexivos e introspectivos da maior parte dos personagens contrastam (“opõem-se” seria demais, um exagero, e não acho que o sentimento fosse esse) com outro tom quando seguidos, precedidos ou permeados por ações e atitudes e conversas estapafúrdias de dois argentinos bastante excêntricos: Calac e Polanco. Não acho que a única intenção de Cortázar tenha sido aliviar a tensão da narração, mas que haja também sabedoria nas bobagens de ambos, como o narrador sugere vez ou outra.

            Além dos argentinos, existem outros personagens, a maioria amigos, esses todos experienciando passeios pela Cidade, um lugar que se situa na zona da distração, no estado de porosidade em que sensações e estímulos dispersos formam algo novo. Uma sensação que acredito universal e que Cortázar foi capaz de explicar muito mais satisfatoriamente do que eu seria capaz se tentasse. Para compreendê-la é muito útil o já mencionado  “Conversas com Cortázar”, em que o argentino explica de maneira mais compreensível e sintética essa sensação.

            Como já disse, não há Oliveira ou Maga nessa obra, mas certos personagens por vezes nos lembram deles: A relação de Juan e Hélène lembra a dos protagonistas de Amarelinha, e há também outras mulheres na vida de Juan, assim como Oliveira teve Gekrepten e Pola. Mas isso se dá sem que Juan seja um outro Oliveira ou Hélène uma outra Maga (a bem da verdade, de certa forma me parece que Hélène está mais próxima de se parecer com Oliveira do que está Juan). No fim, o autor consegue sempre renovar seu tema favorito: o ser humano, seus questionamentos, suas buscas. Seja pelo kibbutz do desejo, seja por aquele quarto onde se tem de entregar certo pacote.

8 comentários:

  1. Oi! Achei este post seu e gostei muito. Estou bolando um projeto de mestrado baseado em meu paredro. O que você pensa sobre ele?

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  2. A ideia parece muito interessante! Me conta mais. Fiquei curioso. :)

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  3. Ainda estou montando. Quando estiver pronto, te falo. Mas seria legal saber sua opinião sobre o que é meu paredro. Ando procurando luzes por todo canto, pra esse projeto. :)

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  4. Ficaria feliz em ajudar. :)
    Escreve pro e-mail do blog, pode até mandar algum material. O endereço é blogmorellianas@yahoo.com

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  5. Vou recomeçar a leitura agora, estava na página 49. A edição é a de 1973, não sei se há diferença entre a minha e esta outra que figura no teu post. O livro é complexo e estou me sentindo burro feito... não! Uma porta tem serventia. Mais burro que uma porra emperrada.

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  6. Oi, Pablo!
    Cara, primeiro me desculpe a demora em te responder, mas seu comentário não tava aparecendo aqui - só recebi ele por e-mail.

    Que eu saiba, não tem diferença, não, entre as edições. Dificilmente as editoras alteram siginificantemente as edições.

    Não precisa te sentir burro. Tu mesmo deu a resposta: o livro é complexo. Muito complexo, aliás. O mais complexo livro do Julio, entre os que pude ler. Acho que eu disse aqui, no texto que fiz sobre o livro, que fiquei atordoado depois da leitura e não tinha entendido grande coisa.

    Bom, acho que esse é um livro que, mais do que lido, deve ser relido. Cortázar começa pelo meio (ou fim, sei lá) da história e nos apresenta aos poucos os elementos, o que vai criando uma bagunça tremenda na nossa cabeça.

    Há pouco tempo, reli "62", pra tirar esse gosto ruim de ter me sentido um leitor burro de não ter entendido da primeira vez. Aí eu entendi que o livro é mesmo assim, requer esforço, atenção e imaginação. Acho que é o livro do JC que mais requer maturidade do leitor.

    Ainda pretendo postar considerações da releitura. Você está lendo ou relendo o livro, Pablo?

    Abraços e obrigado pelo comentário!

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  7. Ufa!
    Eu me sinto extremamente burra lendo 62, feliz que todos tenham se sentido assim, rs
    Tomei mais coragem agora.

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  8. Oi, Marília!
    Fica tranquila, o sentimento que todos têm é esse, mesmo, ou, pelo menos, um bem parecido. Faz mais de dois anos que escrevi esse texto sobre "62", mas ainda lembro bem da frustração de tentar ,tentar, tentar e ficar perdido no enredo. Mas é um livro que compensa as dificuldades que apresenta. Relê-lo, então, é muito bacana. Insiste aí que você consegue!

    Beijos,
    Gus

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