terça-feira, 14 de setembro de 2010

La otra orilla

Capa da edição atual, da Punto de Lectura

            “La otra orilla”, com contos escritos entre 1937 e 1945 mas só publicado em 1994, é o único livro de contos de Cortázar que ainda não tem versão em português (levando em conta que por “livro de contos” a gente entenda aqueles que a Alfaguara reuniu em seus dois volumes de “Cuentos Completos”). E não dá pra entender por que.

            Talvez alguma obscura questão de custo de publicação, já que o livro tem, mais ou menos, 78 páginas, o que ia gerar um livro caro pro pouco número de páginas. Só que, mesmo sendo curto, o livro tem muitos contos: treze no total. Além disso, são contos muito bons, que mostram como desde jovem Cortázar tinha mão pra escrever como escrevia.

            Como típico de Cortázar, o livro é dividido em seções; mais especificamente, três: “Plagios e traducciones”, “Historias de Gabriel Medrano” e “Prolegómenos a la Astronomía”. Cada seção tem contos mais ou menos relacionados entre si (dá pra entender, né? Relações temáticas em Cortázar é um assunto que pode se estender muito), mas que ao mesmo tempo têm total independência. De forma geral, são contos curtos, o que me agrada, e com um potencial de impacto considerável. O brabo é que assim não dá pra falar muito dos contos, ou lá se vai a surpresa deles. Bom, vou fazer o meu melhor.

            A seção “Plagios e traducciones” começa com “El hijo del vampiro”, uma história sobre como um vampiro se apaixona e sobre o fruto que se origina dessa paixão. História curiosa porque não me lembro de figuras sobrenaturais aparecerem assim, tão claramente, em outros textos de Julio.

            O segundo conto é “Las manos que crecen”, uma história que já se conta um pouco em seu título: um cara bate em outro e depois começa a sentir suas mãos crescerem, crescerem, até arrastarem dolorosamente no chão. Desespero e limite entre as realidades são boa parte do recheio desse baita conto.

            “Llama ele telefono, Delia”, em seguida, conta a história de uma ausência, de alguém que se foi e de quem a protagonista já não tem mais notícias, até que lhe chegam algumas por um amigo em comum, notícias com conseqüências bem cortazarianas.

            “Profunda siesta de Remi” lida com os sonhos e aquela zona em que se misturam com a realidade de quando estamos acordados, tema sempre intrigante para o autor; aqui o personagem principal busca finalmente alcançar o que os sonhos lhe mostram.

            Fecha a primeira parte o conto “Puzzle”, interessantíssimo, entre outras coisas, por ser narrado em segunda pessoa. Usando o “usted” (acho que a noção de polidez e certo distanciamento se perderia na tradução para o português), Cortázar conta como eu (ou tu, no teu caso, quando tu ler esse conto) assassinei uma pessoa e como isso foi feito de tal maneira que foi quase o crime perfeito. O final é quase lugar comum, mas tem um algo a mais que o salva disso.

            Quem já leu “Os prêmios” (ou, quem sabe, leu meu texto sobre o livro) vai achar bem familiar o título da segunda seção de “La otra orilla”: “Historias de Gabriel Medrano”. Considerando que “Os prêmios” é de anos após “La otra orilla”, é interessante ver como a figura de Medrano já existia na cabeça de Julio antes de ele escrever a história do cruzeiro marítimo.

            O primeiro conto dessa seção é “Retorno de la noche”, onde há o relato de uma experiência de projeção astral ou algo parecido.

            O segundo, “Bruja”, traz de volta outra personagem de “Os prêmios – ou, pelo menos, alguém com o mesmo nome e mesma capacidade para confusão: Paula. Nesse conto, Paula é uma bruxa que consegue o que deseja bastando-lhe para tanto pensar com afinco no objeto de desejo. Dá gosto pensar que seja a mesma Paula que acompanha Medrano em “Os prêmios, porque assim a gente entende um pouco melhor o fascínio que ela exerce sobre os homens.

            No terceiro, “Mudanza”, Medrano não aparece, mas as coisas estranhas continuam a acontecer: um homem começa a reparar que sua rotina está mudando, a começar por certo quadro na parede... Até essa rotina sofrer uma mudança de verdade, com o sentido que damos à mudança de uma casa: um deslocamento para outro ponto de vista.

            O quarto, e último, dos contos da segunda seção é “Distante espejo”, no qual também não aparece Medrano. A exemplo de “Mudanza”, aqui também há, como uma ruptura na rotina, um deslocamento do ponto de vista; mas, chegando lá, o protagonista encontra-se consigo mesmo.

            A última seção do livro é “Prolegómenos a la Astronomía”, iniciada com o conto “De la simetría interplanetaria” que, por sua vez, começa com uma citação... do Pato Donald! Nesse conto algo irônico, o narrador conta como conheceu os farenses, extraterrestres que parecem ser bons, amáveis e cultos (de início, eles me fizeram lembrar dos cronópios), até que a relação deles com o messias da raça deixa perplexo o narrador...

            “Los limpiadores de estrellas”, em seguida, parece uma daquelas histórias dignas de integrar qualquer almanaque de autoria de Cortázar (“A volta ao dia em oitenta mundos” ou “Último round”), pelo seu teor lúdico-imaginativo (poxa, uma sociedade que limpa estrelas!), mas acaba com um tom mais próximo de um conto de “Bestiário”.

            “Breve curso de Oceanografía” tem esse mesmo tom dos dois contos anteriores, manejado tão bem por Julio. Nesse conto, conta ele como foi que uma raça extraterrestre que vivia na Lua Foi dizimada.

            Fecha a seção e o livro “Estación de la mano”, o mesmo que citei brevemente na minha resenha do tomo II de “A volta ao mundo...” A história é basicamente a mesma (acho que só um pouco mais bonita, porque ultimamente o espanhol tem me soado uma língua muito bonita) e o que há a mais é uma dedicatória logo após o título: A Gladys y Sergio Sergi. Reconheço, agora, que esse conto merece melhor resumo do que aquele que fiz na resenha mencionada acima. É uma bonita (e triste, como o são muitas das coisas bonitas) história sobre a confiança nos relacionamentos e a volta à mediocridade, depois de uma tentativa de viver de um modo mais solto.

            Enfim... repito: Não sei por que “La otra orilla” não tem versão em português, porque esse livro é Cortázar em grande forma!



            P.S.: Dica para o futuro tradutor desse livro: Não cometa o mesmo cômico erro que eu, achando que orilla é orelha – o que não fazia o mínimo sentido! Orilla, em espanhol, significa margem. Nunca confie demais em seu conhecimento do idioma!

2 comentários:

  1. Gustavo.
    Acabo de ler este livro. Seus comentários estão acertados. Só quero fazer uma pequena ressalva ao que você escreveu sobre “Distante espejo”: "não aparece Medrano". Na verdade, ele é o narrador (note que ele risca com canivete as iniciais G e M na madeira da escrivaninha/mesa).
    Parabéns pelo blog (excelente trabalho). Também estou traçando a obra cortazariana desde o ano passado (leituras e releituras) e vou consultar seus posts sempre que terminar mais um livro.
    Abraços. Wladimir Cazé

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  2. Olá, Wladimir!
    Não sei te dizer, exatamente, porque escrevi aquilo: se por ato falho ou se por vontade de preservar a surpresa para o leitor (mais provável, já que minha ideia nunca foi estragar as surpresas, mas, ainda assim, já avisei antes, em algum post antigo, que tome cuidado quem ler, porque posso me empolgar e falar mais do que devo sobre o enredo... risos).

    Obrigado pelos comentários e elogios! Fico muito contente e ainda mais disposto a continuar o projeto do Morellianas quando recebo um comentário como o seu.

    Se tiver lid oalgum livro do JC que não conste aqui e quiser comentá-lo, fique à vontade para mandar um texto por e-mail para ser publicado aqui.

    Abraços!

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