Desta vez o mais difícil é não incorrer num resumismo, quero dizer, num simples contar o que se ler. Seria complicado divisar as coisas que posso escrever para causar curiosidade no leitor (e assim incentivá-lo a ler o livro) das que, contadas, arruinariam parte do enredo. Isso que acabo de dizer é uma verdade mais ou menos geral para os romances, mas é especialmente justo quando o romance em questão é “Os prêmios”.
E assim é porque o mistério é fundamental para a história, sendo praticamente mais um personagem dela, influindo em comportamentos e motivando atos dos personagens “de carne e osso”. Ele é denso e inquietante, e se apresenta na primeira chance, logo de início. Nem bem conhecemos os nomes dos personagens e já nos assalta a dúvida: que fazem eles ali? Quais continuarão conosco no desenrolar dos fatos e quais são coadjuvantes?
À medida que o livro avança, algumas questões são respondidas (o barco a tomar é o Malcom) enquanto outras as persistem (como pode que os vencedores do sorteio tenham sido tão diversos, mas com a notável coincidência – coincidência mesmo? – de dois colegas de trabalho?). O mistério-mor, agora que penso detidamente nisso, é como a condensação de todo o ambiente que cercou os passageiros, desde o primeiro encontro no café até o desembarque, de volta a Buenos Aires. Me refiro ao mistério da popa, à qual o acesso dos passageiros não é permitido. Por quê? O que há lá? Perguntas que a própria humanidade se faz, em escala existencial maior, há muito tempo...
Cortázar aproveitou bem, aliás muito bem, a questão existencial no livro, através de personagens conflitantes e por isso mesmo verdadeiros. A ruiva Paula Lavalle, por exemplo com sua personalidade estranha e um pouco confusa, parece, aos poucos, questionar-se. Mas o processo é muito mais perceptível em Cláudia e em Medrano, principalmente os conflitos com suas reminiscências.
Outro ponto interessante é Pérsio, personagem parte louco, parte vidente, que percebe os indivíduos do navio como integrantes de um todo que é mais do que a soma das partes, formando algo como uma ordem superior, ou por ela sendo coordenada. Nisso pode-se ver elementos seminais do que Julio proporia em “62: Modelo para armar”, anos mais tarde.
O magistral do romance em questão é que, mesmo um pouco absurdos (ou talvez por isso mesmo), os personagens são verossímeis, dotados de características que nos fazem vê-los não só como possíveis mais como prováveis cidadãos portenhos. Da Quilmes que não está bem gelada ao táxi no retorno para casa, vemos Cortázar trabalhar muito bem como o sentimento de argentinidade. E esse é só um dos méritos, entre os vários que expus e outros mais, che!
Boas salenas, cronópio cronópio!
ResponderExcluirLi esse livro na época das provas do colégio, admito que deixei de lado matemática e física por duas tardes inteiras e parte da noite. O livro todo é delicioso, e até os pensamentos confusos do Pérsio são mui excitantes. O fim mexeu muito comigo, naquela noite fui dormir pensando "e eles voltaram pra casa e pronto? não, isso tá errado, não devia ser assim!" -totalmente desiludida, haha. Alías, a edição que tenho dele é da década de 80, antes da reforma ortográfica e com capa dura, e tem uns desenhos meio estranhos na capa...hehe