Capa da 2ª edição, da Nova Fronteira |
Lançado em 1980 no original em espanhol, “Queremos tanto a Glenda” foi logo traduzido para o português (a 2ª segunda edição data de 1981). O estranho é que a proximidade temporal entre a publicação na Argentina e no Brasil não encontre paralelo no título do livro. Quero dizer, andaram quase juntas as edições, mas na hora de traduzir o título algo aconteceu: de “Queremos tanto a Glenda” (em espanhol) chegamos a “Orientação dos gatos” (em português). A tradução é de Remy Gorga Filho, tradutor respeitado e habituado a traduzir Cortázar, então estão minimizadas as possibilidades de equívoco, ou seja, Remy sabia o que estava fazendo. Os gatos não fazem tantas aparições nos contos do livro para justificar essa mudança (à exceção do conto homônimo, eles aparecem brevemente nos outros). Talvez Remy tenha querido fazer justiça à figura do gato, sempre presente (com destaque ou não) nos textos de Julio. De qualquer forma, parece que assim fica desprestigiado o conto que originalmente dava título ao livro.
O livro é dividido em três partes (I, II e III) e a parte I começa justamente com “Orientação dos gatos”, um dos contos mais ao estilo comumente conhecido de Cortázar. É um conto curto, de meia dezena de páginas, sobre a relação estranha que se estabelece entre um homem, seu gato e sua mulher, formando um triângulo, não amoroso, mas metafísico, que conta ainda com a arte para completar-se.
Segue-se, então, “Queremos tanto a Glenda”, um conto que surgiu para Cortázar – como ele conta em “Conversas com Cortázar” – ao ver um pôster de um filme no qual atuava Glenda Jackson. Um história de obsessão, em que os admiradores da atriz (aqui com certeza outra, já que leva outro sobrenome) fazem de tudo para que a perfeição seja atingida. Uma das melhores frases de em cerramento de conto que já li e um clima de tensão muito bem construído.
O terceiro conto é “História com aranhas”, um conto misterioso em que se demora a conhecer os protagonistas e os que lhes fazem companhia em um ambiente estranho, quase deserto. Aqui há aquela sensação de vislumbre, porém incompleto, quando é impossível divisar direito os contornos. Me parece ser o conto que mais requer participação do leitor para construir a trama e, por isso mesmo, o mais difícil de comentar.
“Texto em uma caderneta”, que inaugura a parte II do livro, tem semelhança com “Manuscrito achado num bolso”, de “Octaedro”. Não só pelo metrô ou pela semelhança no título, mas pela sistematização, pela ordem que há nesse meio de transporte e também pela busca do desconhecido, por aquilo que está ali, que queremos encontrar e desvendar, mas não conseguimos. A partir do aparente desaparecimento de usuários do metrô, somos conduzidos em uma busca para desvendar quem são “Eles”.
Em seguida, “Recortes de jornais”. Texto surpreendente, porque começa com um quê de manifesto político ou social (usando como recurso um recorte real, um protesto contra a tortura e a ditadura na Argentina), nos envolve e por fim dirige-se para outro enfoque, uma outra forma de sentir a realidade. Um interessante conto, narrado na voz de uma mulher (coisa rara em Cortázar, se bem me lembro).
O último conto da parte II (e o sexto do livro) é “Tango de volta”, sobre o passado que parece voltar para atormentar uma senhora. A dúvida é uma constante no conto, estendendo-se durante muito tempo, sendo depois substituída pela sensação clara de destino, de que não há o que se possa fazer para evitar as coisas, que já estão traçadas, determinadas.
A última parte é a mais rica, creio. Nela, são quatro contos de estilos variados. Clone, o primeiro deles, é o mais trabalhosamente engendrado: de uma um pouco semelhante a “62: Modelo para armar” e “Os prêmios” a noção de partes componentes de um todo é importante, mas com a adição de um papel muito importante reservado à música (a explicação de Cortázar, que segue o conto, é incrível, além de demonstrar o quanto ele conhecia de música clássica – uma leitura que recomendo aos que queiram compreender como funcionou a cabeça do escritor para compor esse conto).
Meu conto favorito vem logo em seguida: Grafitti. Esse pequeno conto, oitavo no livro, e segundo na parte III, é uma história sensível e sonhadora, em meio a um universo que em nada favorece isso. É um dos contos mais bonitos e emocionantes que Cortázar já escreveu e onde se vêem suas características mais singelas, mais belas, mais doces. Uma história de amor, de cumplicidade, desenhada a giz.
“Histórias que me conto”, logo em seguida, é um conto sobre os limites entre a realidade e o sonho e a difusa divisão entre eles. Um assunto que já foi tratado pelo autor, mas que de forma nenhuma simplesmente se repete aqui. Cortázar dá constante fôlego a esse assunto, mantendo o mistério no conto.
O décimo, último e mais difícil de ler é “Anel de Moebius”. A epígrafe do conto é de Clarice Lispector e dá o tom do conto. Conhecer a figura do Anel de Moebius ajudará a entender o conto e suas recorrências, seus ciclos, aparentemente infinitos e pouco definíveis ou classificáveis. Confesso que foi penoso chegar ao fim dessa história, a repetição se gruda no leitor e parece puxá-lo um pouco, impedir um pouco o seu progresso. É um conto inquietante e raro em Cortázar, por trabalhar com um terceiro tipo de existência, que não é nem a cotidiana, nem a do tempo alterado. Falar mais seria estragar as surpresas.
Não é nada fácil ler Cortazar...principalmente para um leigo, mas é muito compensador entrar no mundo fantástico criado pelo autor
ResponderExcluirTem razão, anônimo. Fácil não é, mas a ideia de JC, creio, é essa mesma: que o leitor lute para construir seu próprio significado para o texto. E, com isso, tome a iniciativa de construir toda sua realidade.
ResponderExcluirAgradeço seu comentário!