segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A volta ao dia em 80 mundos - tomo I

Capa da edição atual, da Civilização Brasileira
            Logo que a editora Civilização Brasileira publicou no Brasil os livros “Último round” e “A volta ao dia em 80 mundos”, de Julio Cortázar eu quis comprar um dos dois (sabe como é, dois livros divididos em dois tomos cada... comprar os quatro tomos de uma vez era financeiramente inviável), um pouco pelo afã de ter algo novo em folha e um pouco pelo meu costumeiro gosto pelas coisas que ele escreve. As capas dos volumes de “A volta...” foram mais apelativas (cara, que azul bonito!) a mim, mas, seguindo um conselho da minha amiga cronópia Janaína Baladão, comprei “Último round”. Agora que li o primeiro tomo de “A volta ao dia em 80 mundos” acho que o conselho da Janína e minha subseqüente decisão foram acertados.

            Não que esse livro seja ruim, não me entendam mal. Mas acho que – e veremos se mantenho o que digo depois de ler o tomo II – “Último round” é melhor e prepara o leitor para a leitura de “A volta...”. Nesse último, encontramos mais idéias complexas do que no outro, existem menos contos no meio dos textos complexos e mais citações em francês (ou pelo menos é o que me indica minha inabilidade de ler satisfatoriamente nesse idioma). Ou seja, o sujeito precisa fazer mais esforço mental.

            Está certo, está certo... Cortázar nunca foi pra acomodados! As obras dele sempre supuseram participação e quase “decifração” por parte do leitor. Mas ele cita muitas leituras que fez, faz muitas referências a movimentos culturais, artistas e intelectuais (pelo menos Saussure eu conhecia), coisa que ou o sujeito pára a leitura e vai lá pesquisar, interrompendo o ritmo, ou passa meio por cima, mesmo.

            Vamos ver se consigo explicar melhor falando de cada texto individualmente:

            “Assim começa” é o texto introdutório do livro. Já aí a gente vai ver o tanto de pensamento que tem que organizar para compreender a leitura do livro: são citados, com ênfase, Man Ray, Robert Lebel e Antonin Artaud, entre outros (como Mallarmé e Charlie Parker, e esses eu conhecia). É o suficiente para dar um nó inicial na cabeça do leitor.

            “Verão nas colinas”, logo em seguida, tem um trecho interessante e engraçado, chamado “Mais sobre gatos e filósofos”, em que se explica a origem do nome do gato de Cortázar e, mais importante, onde se revela que esse seria o nome de um gato a aparecer em “62: Modelo para armar”.

            Mais adiante, “Tema para São Jorge” é uma história daquele tipo que Cortázar sabe fazer como ninguém: um homem sempre vê um monstro em cada novo local que trabalha, sempre um monstro diferente, formado pela soma de pequenas coisas do ambiente de trabalho e dos colegas (piadas, charutos). É antes uma boa metáfora do que um conto fantástico. Um bom conto do livro.

            “Da seriedade nos velórios” é um texto com algumas anedotas seguidas de uma reflexão sobre o tratamento dado ao humor pelos escritores argentinos e “Do sentimento do fantástico” é um texto quase teórico, mas com doses de humor e com exemplos da literatura.

            Em “- Eu poderia dançar essa poltrona – disse Isadora”, Cortázar conta a história de um Adolf Wölfli, criminoso louco que, no hospício, começa a produzir arte. Wölfli cria coisas que são mais de uma coisa – obras que são o que são e, ao mesmo tempo, outras coisas, bem diversas: uma cidade que também é bolachas, que também é cerveja, que também é Sankt Adolph. A partir disso, a reflexão de Julio é que todas as coisas podem ter sido também outras – por exemplo, um evento histórico que também foi a nossa torrada no café da manhã de ontem.

            Passando rapidamente pelos textos seguintes, em “Um Julio fala do outro” Cortázar fala de seu amigo, o pintor Julio Silva, sob a “observação” de outro Julio, Julio Verne (um dos autores favoritos de Cortázar. “A volta ao dia em 80 mundos” teve como inspiração no título e na noção de viagem o livro “A volta ao mundo em oitenta dias”, de Verne); “Aumenta a criminalidade infantil nos Estados Unidos” é um dos poemas de Cortázar de que mais gostei e o título dispensa maiores explicações.

Daqui em diante, da metade do tomo para frente, o livro melhora, fica menos intelecto e mais sensações.

“Sobre a maneira de viajar de Atenas a Cabo Súnio”: texto sobre como a memória prega peças na gente e como às vezes a gente acaba ficando com coisas na memória que não foram o que a gente viveu, mas o que os outros nos contaram.

“Diálogo com maoris”: mais uma vez a temática das coisas que juntas formam não só a reunião de todas, mas alguma outra coisa, diferente e externa (vê-se isso também em “Último round”).

“Noites nos ministérios da Europa” é um conto (finalmente um!) ilustrado por pinturas de Paul Delvaux, o que combina bem com o clima de mistério. Muito bom conto, especialmente porque não é difícil imaginar o próprio Cortázar como protagonista do conto (o protagonista também é tradutor).

“De outra máquina celibatária” é provavelmente o texto mais... incomum... de “A volta...” Conta como Cortázar conheceu um certo Juan Esteban Fassio que criou uma máquina de ler “O jogo da amarelinha” – dotada de botões, gavetas com uma cama ao lado, para maior conforto. As ilustrações são desenhos da máquina. Só não entendi por que Cortázar refere-se ao capítulo 55 de “Amarelinha” como “o capítulo emparedado”.

O intérprete de tango Carlos Gardel é assunto de “Gardel”. Um dos poucos textos em que Cortázar discorre sobre o tango (refletindo sobre a situação do tango à época de Gardel e à época em que o texto foi escrito), estilo que não era lá muito de sua preferência, pelo que já li em seus depoimentos.

Estamos quase no fim e aparece “Não há pior surdo que aquele que”. Apesar de bem escrito e com alguns trechos engraçados, é bastante incisivo em suas críticas a certos tipos de posturas literárias. E ele também critica as traduções, como culpadas por parte da falta de qualidade literária. Até entende-se que em 1967 a concepção de tradução ainda residia na equivalência... Mas Cortrázar era ele próprio um tradutor, devia saber que a tradução pode ser boa ou ruim, mas que depende de quem a executa e que, pode, sim, manter ou recriar aspectos além dos meramente informativos, como o rítmico, por exemplo.

O melhor texto do livro (acho que é um conto, mas nesses livros de textos tão diversos fica difícil precisar...) na minha opinião vem logo depois: “Você tem que ser realmente idiota para”. O texto mostra como é bom ser isso que os outros chamam de idiota, como é bom ser capaz de se encantar com as coisas que os outros teimam em explicar, em compreender, em analisar. Como é bom apreciar infinitamente o espetáculo da noite, maravilhado, enquanto os outros se preocupam em dizer “mas o figurino...” ou “mas a coreografia...”. Como é bom gostar das coisas assim!

Antes de terminar com algumas citações, o livro apresenta três historinhas simpáticas, intituladas coletivamente de “Duas histórias zoológicas e outra quase” (são elas “Sociedade anônima”, “Por escrito galinha uma” e “Sobre a solução de controvérsias”). Histórias engraçadinhas e ternas, ao estilo “Histórias de cronópios e de famas”.

2 comentários:

  1. Chegou ao Tomo 2? Estou terminando o 1, e concordo com vc em relação ao excesso de citações. Mas particularmente isso não me incomoda tanto. Gosto da sensação de estar montando um quebra-cabeças, por mais ilusório que seja o "conhecimento" fast-food proporcionado por google e afins.
    Ainda não li "O ultimo round".
    Enfim, adorei descobrir seu blog.
    Abraço de cronópia.

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  2. Oi, Raíssa.
    Cheguei ao tomo 2, sim. Segue o link:
    http://blogmorellianas.blogspot.com/2010/09/volta-ao-dia-em-80-mundos-tomo-ii.html

    Obrigado pelo elogio. :) Fique à vontade para participar do Morellianas!

    Abraços!

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